Uma questão de Vida e de Morte



Nebulosa de gás e poeira (NGC 6726) onde a síntese de matéria orgânica em torno dos grãos de poeira é frequente. (Crédito: Loke Kun Tan, StarryScapes)
“Todos os anos, 300 toneladas de matéria orgânica, rica em carbono, colide com a Terra na forma de poeira microscópica proveniente da evaporação de fragmentos cometários e pequenos meteoróides, na atmosfera terrestre. Periodicamente, uma tonelada ou mais destes compostos caem directamente na nossa superfície planetária aquando da colisão de grandes asteróides carbonáceos. Há quatro mil milhões de anos, precisamente antes dos primeiros e mais antigos vestígios de vida que conhecemos, as colisões com a Terra e a chegada de matéria orgânica do espaço ultrapassavam todos os valores que até aqui se supunham.” Estas são as conclusões apresentadas num extenso artigo sobre a origem cósmica da vida por dois astrofísicos do Ames Research Center da NASA num número da revista “Sky and Telescope”. Poderá toda aquela matéria orgânica, formada em condições abióticas no meio interestelar, ter de certa forma contribuído para a origem da vida na Terra? Esta é uma velha questão e certamente que os novos elementos disponíveis nos levam a supor ter havido uma forte contribuição cósmica para a origem da vida. Isto, evidentemente, não é afirmar, como fazem alguns entusiastas da panspermia, que a vida veio directamente do espaço, “semeada” aqui na Terra onde encontrou o ambiente favorável.

Os mecanismos que levam à produção e evolução das moléculas orgânicas no meio interestelar estão hoje bem esclarecidos. Dão-se na superfície de pequenos grãos de poeira com gelo que, pela acção da radiação ultravioleta, desencadeiam toda uma série de reacções químicas que levam à formação de um invólucro orgânico em torno do núcleo de poeira. É uma descoberta formidável: o espaço entre as estrelas está cheio de matéria orgânica. Também o sistema solar é um repositório de compostos orgânicos complexos. Não seria de esperar outra coisa, pois os planetesimais, que se agregaram para formar os planetas e os pequenos corpos, eram outrora a poeira do meio interestelar. Cometas, asteróides, pequenos satélites e muitos meteoróides estão repletos da matéria precursora da vida. Só nos condritos carbonáceos, um dos tipos de meteoritos menos alterados, existem para cima de 400 compostos orgânicos, incluindo alguns que ainda não foram encontrados na Terra.

Matéria da vida


Condrito carbonáceo de Orgueil que apresenta um teor de 6% de matéria orgânica. (Crédito: MNHN, Paris)
Os meteoritos oferecem-nos a rara oportunidade de examinarmos compostos orgânicos de origem extraterrestre. De grande interesse para os investigadores da origem da vida são os meteoritos carbonáceos que, como vimos, constituem uma pequena percentagem de todos os meteoritos conhecidos. Chamam-se assim por conterem côndrulos e uma quantidade variável de compostos orgânicos que em alguns casos pode ultrapassar os 5% do peso total da amostra. Um dos mais notáveis condritos carbonáceos é o meteorito de Orgueil que caiu no Sul de França em 14 de Maio de 1864. Cerca de vinte pedras, a maior do tamanho da cabeça de um de um homem, espalharam-se numa área de cerca de 3 Km2, perto da aldeia de Orgueil, no departamento de Tarn-et-Garonne. Quase 12 quilos foram recolhidos logo após a queda, e mais de 9 estão no Museu de História Natural de Paris.

Após a queda do meteorito de Orgueil, muitos químicos e mineralogistas decidiram investigar os fragmentos da matéria extraterrestre que assim se lhes deparava. Daubrée, por exemplo, obteve algumas pedras logo a seguir à queda e, depois de se ter certificado bem de que tinha sido eliminada a contaminação do solo, começou a examiná-las com colaboração de Cloez. No primeiro relatório, tornado público no ano da queda, afirmou que havia encontrado carbono no interior do meteorito. Também notou que havia um sal contendo amónio, que se acumulara gradualmente na crusta derretida, devido à emissão de gases do interior da amostra. Segundo Cloez, havia 6,4 por cento de matéria orgânica parecida com o ácido húmico, neste meteorito. Esta observação está absolutamente de acordo com o valor achado por Wiik em 1956. Quatro anos após a queda do Orgueil, Berthelot fez um estudo bastante completo sobre ele e declarou que havia compostos de carbono da fórmula geral CnH2n+2, dando a entender que tinha isolado alguns dos hidrocarbonetos semelhantes aos alcanos normais. Nos anos 60 e 70 do século passado, as pesquisas sobre o Orgueil foram levadas muito longe por alguns investigadores. Alguns chegaram mesmo a “ver” estruturas tipicamente biológicas no Orgueil e noutros condritos carbonáceos: Descreveram-nas como algas e vários tipos de sementes, desenhando meticulosamente as suas complexas formas que não poderiam ser explicadas por processos inorgânicos.


Estrutura desenhada de uma observação microscópica de uma lâmina do meteorito de Orgueil, apresentada como uma possível alga.
A história é interessante e pedagógica, merecendo ser citada como um exemplo da dificuldade ou deturpação na investigação científica. Muitos consideram que se tratou de uma fraude, mas os cientistas e as instituições envolvidas parecem eliminar esta possibilidade. De qualquer forma, um dos geoquímicos que trabalhou no Orgueil publicou, em 1975, o primeiro volume da série “Developments in Solar System and Space Science”, um livro de 747 páginas, com o título “Carbonaceous Meteorites”, recheado de impressionantes imagens de “microestruturas” no Orgueil e noutros meteoritos, levado à estampa pela prestigiada editora internacional Elsevier. Estruturas hoje vistas como contaminações e exageros de interpretação. Com efeito, como é inevitável o problema de contaminação nos estudos dos meteoritos, muitos dos resultados obtidos são encarados com cepticismo e as conclusões postas em dúvida.

O estudo da matéria orgânica nos condritos carbonáceos foi retomado com novo folgo depois da análise das rochas lunares. Em 28 de Setembro de 1969, por volta das 11 horas, foi visto um clarão atravessar o céu, a sul, perto de Murchison, uma pequena cidade a cerca de 136 quilómetros a norte de Melbourne, na Austrália. A queda foi presenciada por muita gente e muitos foram capazes de fazer um relato fiel do acontecimento. Sobre Murchison, este objecto celeste explodiu e choveram fragmentos. Muita gente ouviu a queda. O barulho durou quase um minuto. Houve um estrondo semelhante a um trovão ou a estampidos sónicos. Logo a seguir à queda do meteorito, testemunhas oculares reuniram-se no local. Alguns contaram que tinham notado algo como o cheiro de piridina ou do metanol, o que era fortemente indicativo da presença de matéria orgânica. O peso total de material colhido era de mais ou menos 82 quilos e está, na sua maior parte, no Australian Museum, no U.S. National Museum, em Washington, e no Field Museum de História Natural, em Chicago.


Forma esquerda e direita de aminoácidos encontradas em no meteorito de Murchison e noutros condritos, eliminando o perigo de contaminação terrestre.
O estudo de um meteorito acabado de cair reduzia ao mínimo a possibilidade de contaminação terrestre. O Laboratório de Evolução Química da Universidade do Maryland, nos Estados Unidos, então dirigido pelo químico orgânico e estudioso da origem da vida Cyril Ponnamperuma, um laboratório que há 35 anos foi pioneiro dos modernos centros de Astrobiologia, estudou o meteorito de Murchison. A amostra foi pulverizada e extraída com água. A seguir foi extraída para pesquisa de hidrocarbonetos e, por fim, hidrolisada para detectar a presença de aminoácidos. A análise revelou que o meteorito continha hidrocarbonetos e o registo de cromatografia parecia indicar que eram de natureza abiogénica. O exame dos aminoácidos revelou que os existentes no meteorito apresentavam ambas as formas esquerda e direita, - levógira e dextrógira – o que não podia ser atribuído a uma contaminação terrestre. Se assim fosse, a contaminação biológica levaria necessariamente ao predomínio das moléculas levógiras invariavelmente presentes nos organismos vivos. Por outro lado, a identificação de aminoácidos não proteicos também é um sólido argumento contra a contaminação. Uma análise do extracto da matéria orgânica revelou que a proporção isotópica era muito diferente da normalmente existente na matéria orgânica da Terra. Por essas razões, aqueles aminoácidos devem ter sido devidos a um processo abiótico extraterrestre.


O açúcar Glucose uma das centenas de moléculas orgânicas complexas descobertas no meteorito de Murchison.
Estudos mais detalhados efectuados no Murchison e noutros condritos carbonáceos recolhidos na Antárctida mostram que para cima de uma centena de moléculas orgânicas foram identificadas naqueles meteoritos. Hidrocarbonetos, hexoses, aminoácidos, purinas, pirimidinas (bases dos ácidos nucleios), compostos fosfatados e outros componentes essenciais à química dos seres vivos existem em muitos meteoritos primitivos. Tem-se apontado diversas hipóteses para a origem da matéria orgânica nos meteoritos. Alguns estudiosos favorecem a síntese Fisher-Tropsch, na própria nébula solar, onde uma mistura de CO, H2O e NH3, aquecida a uma temperatura de cerca de 700º C e na presença de um catalisador, produziria compostos orgânicos meta-estáveis. Outros favorecem a síntese Miller-Urey, ocorrendo no corpo parental dos condritos, no qual uma mistura de CH4, NH3 e H2O, sujeita a radiação ultravioleta energética, produziria os compostos orgânicos encontrados nos meteoritos. A análise do conteúdo de deutério nestes compostos aponta para uma origem e relação com as nuvens interestelares, onde os compostos orgânicos são abundantes.

Algumas descobertas recentes parecem mesmo sugerir que um ligeiro enriquecimento em moléculas levógiras em alguns condritos podem mesmo ser responsáveis pela indução da homoquiralidade (actividade óptica-estrutural das moléculas) da química da vida na Terra primitiva. O que tudo isto parece sugerir é que as sínteses pré-bióticas de matéria orgânica foram frequentes antes de os planetas estarem formados, sendo o seu estudo importante para compreender como a vida se originou na Terra. Por outras palavras, as “moléculas da vida” estavam preparadas antes de o nosso planeta nascer.

O caso ALH 84001


Os astrónomos sempre especularam sobre a possível existência de vida em Marte. (Créditos: JPL/NASA e USGS)
No dia 7 de Agosto de 1996 o mundo inteiro foi surpreendido com a súbita notícia da descoberta de vestígios de vida fóssil num meteorito proveniente do planeta Marte – o ALH 84001, um dos vinte calhaus conhecidos que caíram sobre a Terra e se sabe serem provenientes daquele planeta. A ser verdade, isso significava que o Planeta vermelho teria outrora possuído vestígios de actividade biológica, pelo menos pequenos micróbios que teriam aparecido nos primeiros mil milhões de anos daquele mundo.

Isso viria a confirmar as muitas especulações de que Marte teve já um ambiente propício ao desenvolvimento de vida, numa altura em que ela apareceu sobre a Terra. Mais importante ainda, seria a primeira confirmação de que a vida era um fenómeno que não se limitava à Terra, uma suposição que muitos fazem mas da qual não temos nenhuma certeza. A confirmar-se a descoberta passaríamos a saber que nas condições certas e num período de tempo relativamente pequeno, a vida parece surgir nas superfícies planetárias, devendo por isso ser abundante no Universo. Seria pela certa uma das grandes descobertas de todos os tempos e em muito modificaria a nossa visão do cosmos em que vivemos. Com o distanciamento considerável, que permite uma análise mais detalhada das divulgações iniciais e depois de o ALH 84001 ter sido a rocha mais estudada de sempre, façamos o ponto da situação das descobertas feitas naquele meteorito.

O ALH 84001 é um meteorito que foi encontrado em 1984 em Allan Hills, na Antárctida, por uma equipa de cientistas da NASA. O seu estudo inicial revelou que a rocha tinha cristalizado a partir de um magma, próximo da superfície de Marte, há cerca de 4,5 mil milhões de anos. Um impacto posterior de um asteróide com o planeta, há 15 milhões de anos, libertou o corpo para o espaço exterior, onde permaneceu até vir a colidir com a Terra, na região do continente antárctico, ficando conservado no gelo durante 13 mil anos.


O meteorito marciano ALH 84001. (Crédito: JSC/NASA)
Sabe-se que o ALH 84001 é proveniente de Marte pelo estudo da composição química dos seus minerais e essencialmente pelo teor dos seus gases raros que fornecem um indicador da atmosfera onde o corpo cristalizou, sendo idêntica aos teores destes gases na atmosfera marciana, conforme foi determinado em 1976 pelas sondas Viking. É ainda idêntico a muitos outros meteoritos do grupo SNC, todos eles provenientes de Marte, embora formados mais recentemente que o ALH 84001. Este último originou-se pouco após a formação do planeta, sendo no essencial uma rocha vulcânica semelhante a muitos basaltos terrestres. As descobertas apresentadas foram feitas em fracções sedimentares – essencialmente calcárias – que preenchem as fracturas profundas do meteorito. Os cientistas pensam que essas fracturas foram enchidas por material que se depositou em meio líquido há 3,6 mil milhões de anos, quando a rocha há muito já estava formada. Os “fósseis” e “vestígios de actividade biológica” relatados pela equipa que escreveu o artigo na “Science” de 16 de Agosto de 1996 apresentam, pois, aquela idade. E que vestígios são esses?


Glóbulos esféricos de carbonato no meteorito ALH 84001. O diâmetro destas estruturas é pouco inferior a um milímetro. (Crédito: JSC/NASA)
Primeiro, os cientistas declaram ter descoberto um elevado teor de matéria orgânica no meteorito. Acontece que essa matéria orgânica pode ter sido produzida abioticamente, sem a presença da vida, à semelhança do que acontece nos condritos carbonáceos. Embora a assinatura isotópica do carbono pareça ser marciana, como o indicou a equipa do prof. Collin Pillinger da Open University, no Reino Unido, onde se encontra um dos melhores laboratórios mundiais no estudo dos isótopos de carbono em meteoritos, uma contaminação terrestre não pode de todo ser abandonada. Outra dúvida levantada diz respeito à origem dos próprios carbonatos que preenchem o meteorito. Para Harry McSween, da Universidade do Tennessee, uma das maiores autoridades no estudo dos meteoritos de Marte, os carbonatos presentes exigem uma temperatura de formação superior a 450 graus centígrados e foram originados a partir de um fluído enriquecido em dióxido de carbono quando de um mega-impacto de asteróide na superfície marciana e não nas condições iniciais do planeta, há 3,5 mil milhões de anos.


Estranhas formas tubulares interpretadas por alguns como “fósseis” de bactérias marcianas. (Crédito: JSC/NASA)
A equipa do artigo da “Science” diz que as microesférulas de carbonato descobertas e as pontuações de magnetite existentes são vestígios inequívocos da actividade de bactérias. Com efeito, estes aspectos são semelhantes a alguns indicadores da actividade biológica mas também aqui uma explicação inorgânica pode ser apresentada. Outros estudiosos do Johnsan Space Center da NASA apresentaram este ano evidências de que a orientação de certos cristais de magnetite, antes só considerados como relíquias da actividade viva, pode ser conseguida por processos não-biológicos. As próprias esférulas observadas em microscopia electrónica estão desprovidas de “paredes internas”, uma característica das células vivas e bem patente nos fósseis de microalgas da Terra primitiva. Mesmo os aspectos em forma de tubo, apesar de enigmáticos, não podem ser considerados como microfósseis na opinião do micropaleontólogo William Schoft, da Universidade da Califórnia em Los Angeles, um dos maiores estudiosos dos fósseis mais antigos até agora descobertos na Terra, com mais de 3,5 mil milhões de anos. Para lá disso, eles são uma centena de vezes mais pequenos do que os fósseis primitivos encontrados na Terra, não havendo nenhuma determinação que mostre a sua composição como orgânica. Por tudo isso, e considerando interpretações passadas erróneas, como o caso que apresentamos do meteorito de Orgueil, é necessário muito esforço para interpretar as estruturas observadas no ALH 84001 como vestígios inequívocos de vida em Marte. Este caso, mostra-nos que as primeiras impressões em ciência podem não ser as mais correctas. Um facto que parece inquestionável é que a queda de grandes asteróides sobre Marte foram suficientes para libertar rochas da superfície do planeta, fizessem com que elas atingissem a velocidade de escape e acabassem por vir a colidir com o nosso mundo. Será que corpos dessas dimensões também colidiram com a Terra?

A grande explosão de Tunguska


Árvores derrubadas na região de Tunguska, quando a região foi visitada pelo mineralogista Kulik em 1927. O derrube das árvores é radial em relação ao centro da explosão celeste de 30 de Junho de 1908. (Crédito: Comissão de Meteoritos da Academia de Ciências da Rússia)
No amanhecer do dia 30 de Junho de 1908, o céu estava limpo e a paz reinava na distante região de Tunguska, em plena Sibéria Central. Mas, subitamente, pelas 7,17 horas locais, o sossego foi interrompido pela explosão dramática de uma gigantesca “bola de fogo” que cruzou o céu de sudeste para noroeste. A explosão de Tunguska foi tão violenta que o centro sismográfico de Irkutsk, situado a 900 km a sul, registou abalos com as proporções de um tremor de terra. As vibrações produzidas alcançaram outras estações distantes como Moscovo e a capital do Império czarista, S. Petersburgo. Mesmo nas distâncias longínquas de Washington e Java os aparelhos de registo foram activados pela explosão imensa. Ao longo da Europa, registaram-se perturbações no campo magnético terrestre e os meteorologistas, com os seus microbarógrafos, conseguiram determinar que as ondas de choque, oriundas da explosão na atmosfera, deram no mínimo duas voltas à Terra.

Eis como uma testemunha, sentada a 60 quilómetros do local da explosão, descreveu o evento:

“Estava sentado no alpendre de minha casa, olhando para Norte, quando, de repente, vindo do Noroeste, apareceu um grande relâmpago de luz. Fazia tanto calor que... a camisa ficou quase a arder nas minhas costas. Vi uma enorme bola de fogo que cobria grande parte do céu... Depois, ficou tudo escuro e, ao mesmo tempo, senti uma explosão que me atirou a vários metros de distância do alpendre. Perdi os sentidos.”

Desde que os relatos da grande explosão chegaram a Moscovo, numerosos estudiosos debruçaram-se sobre o assunto e as primeiras hipóteses foram surgindo. A explicação que recebeu maior popularidade era a que de um meteorito, com um peso superior a um milhão de toneladas, havia caído em alguma região da floresta siberiana. Aquela ideia prevaleceu até que, em 1921, o mineralogista soviético Leonid Kulik, acreditando que podia explorar com grande lucro o ferro e outros metais trazidos pelo meteorito, iniciou uma longa pesquisa para identificar com precisão o ponto de queda. Em Fevereiro de 1927, Kulik partiu para a grande e difícil viagem. A primeira parte da viagem foi feita de comboio e o resto de trenó, puxado a cavalo. Apesar de estarem na época mais favorável, Kulik e os seus colaboradores suportaram temperaturas negativas e os perigos da taiga siberiana. Depois de exaustiva caminhada pelas margens do rio Tunguska e do rio Makirta, encontraram um panorama inarrável: uma imensa devastação na floresta, que aumentava à medida que se dirigiam para o norte. Enormes árvores seculares haviam sido derrubadas e uma grande área de árvores mortas mostrava sinais de calcinação de cima para baixo, como se um súbito e instantâneo calor as houvesse queimado. Para espanto de todos não encontraram nenhum sinal de uma cratera meteorítica, como seria de esperar, caso tivesse caído um gigantesco meteorito.


A região central da grande explosão da Sibéria de 1908. (Crédito: Comissão de Meteoritos da Academia de Ciências da Rússia)
Insatisfeito com os resultados, Kulik voltou em 1928 e depois em 1929, quando permaneceu mais de 18 meses na região, efectuando pesquisas, sondagens e escavações. Chegaram até a perfurar vários poços com mais de 20 metros de profundidade, em busca de fragmentos do tal meteorito. Era um verdadeiro mistério: não encontraram o mais simples vestígio de ferro meteórico. Para Kulik, talvez o meteorito não tivesse chocado com a Terra, mas explodindo no ar acima da região atingida. Em 1930, o meteorologista inglês Francis Whipple e o astrónomo soviético I.S. Astapovich concluíram, independente e simultaneamente, que o objecto que caíra na Tunguska era provavelmente um cometa gasoso que não teria deixado vestígios da sua composição na superfície. Depois das expedições efectuadas pela então Academia de Ciências da URSS, em 1958, 1961 e 1962, a hipótese mais aceite passou a ser a do choque de um cometa com a Terra. O astrofísico Vasilli Fesenkov, membro da Comissão de Meteoritos da Academia, chegou mesmo a calcular que a possível velocidade do cometa na hora do impacto seria de 30 a 40 km por segundo.

Em 1978, o astrónomo checo Lubor Kresak parece ter percebido e interpretado correctamente o enorme enigma. Num artigo publicado no “Boletim do Instituto de Astronomia da Checoslováquia”, Kresak apresentou fortes evidências de que o objecto de Tunguska era um fragmento do cometa Encke, separado dele há milhares de anos. Outros cientistas, como o astrónomo soviético Igor Zotkin e o geofísico norte-americano Thomas Ahrens, afirmam que a hipótese da colisão da Terra com um pedaço de cometa constitui a explicação mais plausível para a misteriosa explosão. Como afirmou um investigador, “apesar de a energia do impacto ter sido semelhante à que formou a cratera meteorítica do Arizona, nenhuma cratera foi formada na zona de Tunguska, o que favorece o impacto de um corpo de baixa densidade, como um cometa”. Os estudos de Kresak permitiram concluir que a direcção do fragmento de Tunguska coincide exactamente com a direcção da corrente de meteoróides Beta Tauridas que ocorre todos os anos em 30 de Junho (ver a parte I deste tema). Sabe-se que praticamente todas as correntes de meteoróides estão ligadas a cometas e algumas delas interceptam a Terra em determinadas alturas do ano, provocando as espectaculares “chuvas de meteoros”. A corrente Beta Tauridas está associada ao cometa Encke e a chuva de meteoros a ela ligada é diurna, só possível de estudar por radar, tendo sido formada no seguimento da destruição do cometa.


Fotografia em falsas cores do cometa Encke feita recentemente. (Crédito: Kitt Peak National Observatory)
O cometa Encke foi descoberto pelo astrónomo francês Pierre Méchain (1744-1804) e é o cometa de mais curto período que se conhece, passando com um intervalo de apenas quarenta meses pelas proximidades do Sol. Isso leva a que o cometa tenha rapidamente perdido a sua fracção de gelos sendo hoje aquilo que se pode designar por um “cometa velho”. Importa aqui referir que esta designação nada tem a ver com o tempo em que o cometa se formou (todos apresentam a idade do sistema solar), mas antes com o facto de ter passado várias vezes pela proximidade do Sol, fazendo com que perca a sua fracção volátil e mantenha restos da fracção refractária. Fragmentos esses que alimentam a corrente de meteoróides como a Beta Tauridas e que podem constituir uma séria ameaça para a Terra, como aconteceu em Tunguska e noutras situações históricas. Entre elas, registemos uma observação da queda de um fragmento na superfície da Lua que foi observada em 25 de Junho de 1178 e o registo, entre 22 e 26 de Junho de 1975 pelos simógrafos deixados pelos astronautas da missão Apollo, de várias sismos na superfície da Lua provocadas por quedas de meteoritos no nosso satélite, possivelmente provenientes do cometa Encke.

Asteróides rasantes

Infelizmente, não é só o cometa Encke que “anda por aí a pregar partidas”. Outros corpos do sistema solar – asteróides e cometas – passam verdadeiras tangentes à Terra, podendo por vezes colidir com o nosso planeta. Conhecidos pela sigla NEOs, de Near Earth Objects, estes asteróides e restos de velhos cometas constituem uma verdadeira ameaça à vida na Terra e por isso se justifica que sejam permanentemente monitorizados por diversos programas de observação astronómica, como o projecto LINEAR (Lincoln Near Earth Asteroid Research) do Instituto de Tecnologia de Massachussets e integralmente financiado pela Força Aérea norte-americana e pela NASA, o Spacewatch Program e o Jet Propulsion NEO Program, para além de e outros desenvolvidos por alguns Observatórios e centros de pesquisa. A maioria destes asteróides são originários da cintura de asteróides e desviam-se para “órbitas rasantes” por colisões entre si ou perturbações provocadas pelo planeta Júpiter. Dividem-se em três grandes grupos: o grupo de Atenas (que permanece sempre dentro da órbita terrestre), o grupo de Apollo (que cruza a órbita do nosso planeta) e o grupo de Amor (com um periélio um pouco exterior à órbita terrestre, entre 1 e 1,38 UA e que se podem aproximar fortemente da Terra.


População de Near Earth Objects (NEOs) recenseada até 2000 e sobreposta às órbitas planetárias. (Adaptado de Steel, 2000)
Com base na população de NEOs e no fluxo de cometas e asteróides que atingem a Terra, é possível avaliar os perigos causados pelos impactos de diferentes magnitudes. O quadro anexo mostra a curva cumulativa de energia para impactos sobre o nosso planeta, bem como a sua frequência de queda. Ela foi calibrada com base no evento de Tunguska, cuja energia estimada foi de 10 a 20 megatoneladas equivalente de TNT com base nos registos microbarográficos. Para energias suficientemente grandes, os impactos apresentam consequências a grande escala, o que é de considerar para corpos com diâmetros superiores a 4 quilómetros, mas não ao ponto de criarem uma catástrofe global. Um caso extremo, mas são conhecidos outros piores ao longo da história da Terra, foi o evento de há 65 milhões de anos, na fronteira K/T, cuja energia estimada em mais de 108 megatoneladas equivalente de TNT, e produziu uma cratera de impacto com 200 km de diâmetro. É para energias a partir desta ordem de grandeza que os astrónomos Clark Chapman e David Morrison consideram um “impacto cósmico catastrófico de consequências globais”, apresentando um período de recorrência de 100 milhões de anos. Para que se tenha uma ideia de que este problema das colisões de asteróides rasantes é do máximo interesse basta dizer que se o evento de Tunguska, um fragmento de um velho cometa a desfazer-se, ocorresse sobre Lisboa, toda a vida e bens materiais entre Santarém e Setúbal seriam completamente destruídas.



Frequência de impactos sobre a Terra e energia libertada, desde o meteorito de Ourique, com um peso de apenas 30 kg e que acontece no globo mais de uma vez por ano até ao evento catástrófico de há 65 milhões de anos (fronteira geológica do Cretácico com o Terciário – K/T).



Fotos do asteróide rasante, com forma de amendoim, Toutatis que várias vezes motivou alarme junto dos media mas cuja órbita está perfeitamente conhecida, não oferecendo risco de colisão. (Crédito: JPL/NASA)
Estes asteróides potencialmente perigosos são relativamente raros, mas são seguidos com todo o cuidado. Entre os recentes encontros próximos e mediáticos de NEOs com a Terra podemos referir o de 14 de Junho de 2002, do tamanho de um campo de futebol, que levou a designação de 2002 MN e passou a uma distância de 120 mil quilómetros de nós, um terço da distância da Terra à Lua e que se deslocava a 10 km/s. O último a ser falado foi o Toutatis, com quase 5 km de diâmetro de comprimento e que em 19 de Setembro passado passou à tranquila distância de pouco mais de 1,55 milhão de quilómetros da Terra, proximidade que não acontecia desde 1353 e só se repetirá em 2652.

Crateras de impacto

A controvérsia sobre a natureza das crateras da Lua é um assunto que pode ser remontado a Galileu Galilei (1564-1642) quando em 1610 apontou um telescópio para o nosso satélite e notou a superfície cravejada de crateras. É curiosa a descrição que traça em “Sidereus Nuncius”, embora esteja longe de apresentar qualquer explicação para as crateras lunares. Curiosamente é Johannes Kepler (1571-1630) no conto de ficção “Somnium”, que descreve uma hipotética viagem à Lua, apenas publicado quatro anos após a sua morte, quem refere que as crateras da Lua eram o resultado do impacto de corpos que ali tinham colidido. Alfred Wegener, com doutoramento em astronomia, e leitor atento de todos os grandes clássicos do assunto, tinha lido “Somnium”, sublinhando e anotando as partes em que Kepler colocava tal hipótese.

É importante referir que Alfred Wegener (1880-1930), universalmente conhecido pelo seu trabalho e proposta da deriva dos continentes, realizou experiências e formulou ideias precisas sobre a origem das crateras da Lua e sobre a importância do impasctismo. Muito antes das suas interpretações e experiências, estudou tudo o que havia sido publicado sobre a Lua, levando a que o geólogo Eugene Shoemaker (1928-1997) considerasse o trabalho de Wegener sobre as crateras lunares como “um exaustivo estudo histórico”.Wegener realizou ainda estudos de campo, após relatos de queda de meteoritos, e visitas a estruturas geomorfológicas que considerou como possíveis crateras de impacto. Numa altura em que existiam ainda dúvidas e muita discussão em torno da sua génese, afirmou que a Meteor Crater, no Arizona, era de facto uma cratera de impacto. Mais importante foi a sua análise crítica às hipóteses existentes, baseada em meticulosas experiências de laboratório, eliminando a “hipótese das bolhas”, a “hipótese de maré” e a “hipótese vulcânica” para a origem das crateras lunares. Efectuou assim experiências laboratoriais à escala, construindo ele próprio um laboratório de geologia experimental. Usou pó de cimento como projéctil e como alvo, obtendo estruturas que se assemelhavam às crateras da Lua, algumas com elevações centrais e raios de ejecta que são bem documentados no seu livro.


A conhecida cratera do Arizona – Meteor Crater – formada há 50 mil anos pela colisão de um meteorito metálico com a Terra. (Crédito: USGS)
Oitenta anos passados sobre o trabalho de Wegener, trinta e quatro anos sobre a aceitação de que as crateras na Lua são provocadas pela colisão de meteoróides, asteróides e cometas, será importante saber até que ponto as Ciências da Terra consideram o papel do impactismo como processo geológico. Só em meados da década de 60 do século passado, com a preparação do programa americano e soviético para a exploração lunar, foram estabelecidos critérios físicos e mineralógicos que permitiram identificar um número de grandes estruturas circulares como crateras de impacto, algumas com dimensões quilométricas. Não basta que uma estrutura seja circular ou elíptica, ou relativamente anómala, para que seja uma cratera de impacto. Tampouco uma simples caracterização geofísica permite definir a origem de impacto de uma cratera. A verificação da existência de fragmentos de meteoritos ou, na maior parte dos casos, de assinaturas mineralógicas e geoquímicas tornou-se um critério definitivo para demonstrar que, ao longo da sua história, a Terra tinha sido atingida por projécteis cósmicos com dimensões que variam de algumas centenas de metros até alguns quilómetros. O estudo da Lua, dos planetas siliciosos e dos satélites dos planetas gigantes corroborou esta ideia e a observação, em Julho de 1994, da colisão de 21 fragmentos, destroços do cometa Shoemaker-Levy 9, sobre o planeta Júpiter, mostrou-nos como as superfícies planetárias podem a qualquer tempo ser atingidas por corpos extraterrestres de grande massa. Conhecem-se hoje 165 crateras de impacto sobre a Terra, todas elas bem documentadas, com características de metamorfismo de choque. Actualmente, três a cinco novas estruturas são adicionadas por ano à lista, havendo sobre a superfície terrestre crateras de impacto com mais de 200 Km de diâmetro.



Distribuição das principais crateras de impacto sobre a Terra.


O enigma dos tectitos

Os tectitos são corpos vítreos de pequenas dimensões, geralmente arredondados e crivados de pequenas crateras, de cor preta a verde-garrafa ou amarela que se encontram em localidades da Terra, espalhados por largas áreas e em total desconexão com a geologia desses locais. São constituídos por um vidro silicioso e, se bem que pareçam vidro vulcânico (obsidiana), são diferentes das obsidianas terrestres, quer na composição, quer na textura. Aliás, desde há muito que se sabe não haver qualquer relação entre os vulcões terrestres e os tectitos. A primeira referência escrita conhecida sobre tectitos apareceu por volta de 950 d.C. num livro chinês de Liu Sun, que os descreveu como “pedras pretas que possuíam um lustre brilhante muito bonito e produziarn um som característico quando percutidas". Sabe-se, porém, que muitos povos pré-históricos usavam os tectitos como enfeites e amuletos. Alguns povos, não se sabe por que razões, concluíram que os tectitos caíam do céu e atribuíram-lhes poderes mágicos.


Foto de tectitos da corrente das moldavites, associados à cratera de impacto de Ries. (Foto do autor)
Um dos aspectos mais curiosos nos tectitos refere-se à sua forma que apresenta, na maior parte dos casos, uma escultura aerodinâmica acentuada, o que parece significar uma entrada rápida na atmosfera terrestre, acompanhada de fusão do material exterior e forte ablação. Para muitos estudiosos, isto implica uma génese extraterrestre, mas a verdade é que os tectitos não são nenhum tipo de meteoritos. Além de uma composição radicalmente diferente de todos os meteoritos, os tectitos, ao contrário daqueles, não registam tempo de exposição no espaço interplanetário. O problema da origem destes calhaus vítreos é deveras fascinante. Uma consulta da bibliografia permite referenciar para cima de duas dezenas de hipóteses sobre a génese dos tectitos. Uma análise mais detalhada apenas nos deixa uma ou duas soluções. Na década de 70, depois do programa lunar, o dr. John O'Keefe, da NASA, apresentou algumas correlações entre a composição química dos tectitos e a de algumas rochas vulcânicas trazidas da Lua pelos astronautas. Com muitos trabalhos publicados e dois livros escritos sobre o assunto, o dr. O'Keefe defende que os tectitos, que possuem idades relativamente recentes, foram ejectados para a Terra por um tipo especial de vulcanismo lunar. Apesar de curiosa, esta hipótese nunca foi tida em grande consideração pela quase totalidade dos cientistas, que se debruçaram no estudo sério destes vidros naturais, nem consegue explicar o facto de algumas áreas de tectitos se encontrarem na dependência de crateras de impacto meteórico. Para a grande maioria dos estudiosos, os tectitos são pedaços de rochas terrestres fundidas. Resultariam do material que era ejectado para a atmosfera quando da queda de enormes corpos meteoríticos ou cometários na superfície terrestre. Posteriormente, esse material era atraído para a Terra e formava campos de tectitos nas proximidades da área de impacto. Assim as principais áreas situam-se na Austrália e Sudeste asiático, no Texas, na Costa do Marfim e na República Checa, sendo nestes três últimos casos conhecida a cratera parental.



Mapa da correntes de tectitos conhecidas, sua idade e associação com as crateras que lhe deram origem, respectivamente: Chesapeake Bay para os tectitos da América do Norte (35 My); Ries para as moldavites (15 My) e Bosumtwi para os tectitos da Costa do Marfim. Para os tectitos da Australásia não é conhecida a sua cratera geradora, sendo a sua idade de apenas 700 mil anos.


O mais interessante de todos estes estudos tem sido a relação que nos últimos tempos vem sendo estabelecida entre os tectitos e alguns episódios mais catastróficos da história do planeta. É possível aos cientistas estabelecer uma ligação entre os tectitos de idades diferentes, que aparecem em zonas também diferentes, e alguns eventos da história geológica, como extinções faunísticas e inversões de polaridade (a mudança dos pólos magnéticos). A título de exemplo, vejamos alguns acontecimentos geológicos associados com a queda de microtectitos (e tectitos) em três zonas que já referimos. Na América do Norte, os microtectitos com 35 milhões de anos, apesar de não estarem associados a uma inversão dos pólos magnéticos, coincidem com uma extinção maciça de várias espécies de radiolários. Aliás, é a partir desta data que se nota uma acentuada descida das temperaturas que vai marcar a transição do Eocénico para o Oligocénico, dois períodos geológicos da Era Cenozóica cuja fronteira parece ser marcada pela ocorrência de um impacto meteórico que deu origem aos tectitos do Texas: a cratera de Cheasapeake Bay. A queda dos tectitos da Costa do Marfim, com 1,2 milhões de anos, está nitidamente associada a uma inversão magnética, conhecida como evento de Jaramilio. Não há uma acentuada mudança biológica, porém foi possível correlacionar com o desaparecimento de algumas espécies de radiolários. Há 700 mil anos, o acontecimento que levou à queda dos tectitos da Austrália e do Sudeste asiático coincide precisamente com a passagem da estratigrafia magnética de Matuyama para Brunhes, a actual. Associado a este episódio houve ainda a extinção de várias espécies de foraminíferos e radiolários.

Com estes três exemplos – a que podemos juntar os tectitos encontrados no final do período Cretácico, há 65 milhões de anos, precisamente quando os dinossauros desapareceram – torna-se difícil duvidar de uma relação, contudo ainda mal esclarecida como veremos a seguir, entre fenómenos de impactismo e alterações súbitas na história da Terra.

Catástrofes na História da Terra

Apesar de todo o conhecimento sobre o sistema solar e da contínua descoberta de crateras de impacto na Terra, os geólogos sempre foram reticentes sobre o efeito do impactismo no nosso próprio planeta. Apesar de o processo estar bem documentado, física e geoquimicamente, pode dizer-se que os geocientistas só recentemente se começaram a aperceber da influência determinante do impactismo na evolução geológica e biológica do nosso planeta, 20 anos depois do artigo do grupo de Berkeley na “Science” sobre a descoberta da camada de irídio na fronteira K/T que marca a passagem dos terrenos do Cretácico para os do Terciário. A descoberta por Walter e Luis Alvarez de uma anomalia de irídio na fina camada de argila que separa as rochas do Cretácico das do Terciário, há 65 My (milhões de anos), em Gubbio, na Itália, e que é coincidente com a extinção dos dinossauros e de 75% da vida da altura, marcou uma das mais polémicas e interessantes discussões das Ciências da Terra. Polémica que só terminou em 1991 com a descoberta da cratera de Chicxulub, no México, com 200 Km de diâmetro e precisamente 65 milhões de anos de idade. Hoje sabe-se que a fronteira K/T é globalmente acompanhada desta anomalia de irídio e outros platinóides, bem como outros traços de uma colisão cósmica: quartzos de choque, microtectitos, esférulas em desvitrificação, espinelas niquelíferas e outras evidências isotópicas apenas compatíveis com a hipótese de uma colisão de um corpo com 10 Km de diâmetro com a Terra no final do Cretácico.


Fina camada de argila enriquecida em irídio que marca a passagem das rochas do Cretácico para as do Terciário e que é acompanhada por uma extinção em massa de fauna e flora há 65 milhões de anos. (Foto do autor)
Nos últimos anos, orientados pelas ideias do grupo de Berkeley, os geólogos alertaram para o facto de muitos outros níveis estratigráficos estarem representados por assinaturas de impacto, sendo muitas delas coincidentes com extinções em massa ou “stepwise extinctions”, formando-se um novo ramo das Ciências da Terra - a Impacto-estratigrafia - onde os métodos tradicionais da Estratigrafia abraçam colaborações astronómicas, cosmoquímicas e mineralógicas. Destes avanços são hoje conhecidas 5 fronteiras estratigráficas com registos de mega-impactos: Frasniano-Fameniano (F/F) há 365 My ; Pérmico-Triásico (P/T) há 250 My ; Triásico/Jurássico (T/J) há 210 My; Cretácico-Terciário (K/T) há 65 milhões de anos e Eocénico-Oligocénico (E/O) há 35 My. Outras têm sido tentativamente interpretadas neste sentido, como a fronteira Ordovícico-Silúrico (440 My), Devónico-Carbónico (360 My) e Cenomaniano-Turoniano (91 My), embora para estes três últimos casos não existam evidências claras para a aceitação de qualquer assinatura de impacto.



Episódios de algumas extinções maciças ao longo dos últimos 250 milhões de anos, estando muitas delas associadas a marcadores mineralógicos de impacto, assinaturas geoquímicas de impacto e a grandes crateras geológicas. O caso da extinção menor do Cenomaniano-Turniano também parece ser marcada por um evento impactista: a estrutura submarina de Tore, uma possível cratera de impacto com 91 milhões de anos. Esta estrutura, de 120 por 80 km de eixos, foi estudada pelo autor e pelo professor António Ribeiro (FCUL) ao longo de uma missão oceanográfica franco-portuguesa que durou 23 dias.


É curioso referir que o geólogo e historiador de ciência William Glen encontrou um interessante comportamento histórico e sociológico no debate da fronteira K/T, na qual a resistência à hipótese impactista era, como seria de esperar, inversa à familiaridade com os conhecimentos sobre impactismo: os cientistas planetários, astrónomos e físicos que lidam com questões da exploração espacial e do estudo dos meteoritos abraçaram a ideia impactista e apontaram pistas aos geólogos; os paleontólogos, sujeitos ao uniformitarismo e confundidos com o que lhes parecia ser uma hipótese “ad hoc” sobre um fenómeno não existente, foram muito reticentes à ideia. Claro que é importante referir que uma conexão directa entre mega-impactos e mecanismos de extinção em massa está longe de ser clara.

A Terra, a Galáxia e a Vida

Em meados da década de 80 do século passado, alguns paleontólogos definiram uma periodicidade das extinções de fauna e flora ao longo dos últimos 250 milhões de anos. Encontraram que as extinções ocorriam com um período de 26 a 30 milhões de anos. Outros geocientistas encontraram períodos semelhantes para diversos eventos geológicos: um de aproximadamente 30 milhões de anos para variações eustáticas, ciclos tectónicos, distúrbios geomagnéticos e picos de ocorrência de crateras de impacto, grandes erupções vulcânicas (“traps”); e um outro de 250 milhões de anos para as grandes idades glaciares, grandes eventos tectónicos, ciclos climáticos e grandes intervalos de inversão magnética. Embora o assunto esteja longe de ser unânime entre os estudiosos e necessite de muitas confirmações, alguns cientistas não deixaram de referir mecanismos astronómicos periódicos para os grandes eventos da história da Terra.

Registo Geofísico de Flutuações de Intervalo Pequeno
FenómenoPeríodo (My)Fonte
Variações do Nível-do-Mar e Climáticas32
30
Leggett e tal. (1981)
Fisher & Arthur (1977)
Ciclos Tectónicos30Holmes (1927)
Extinções em Massa32
26-30
Fisher & Arthur (1977)
Raup & Sepkoski (1984)
Épocas de distúrbios Geomagnéticos32-34Negi & Tiwari (1979)
Crateras de Impacto31+/- 1
28
Rampino & Stothers (1984)
Alvarez e Muller (1984)
My – milhões de anos

Registo Geofísico de Flutuações de Longo Intervalo
FenómenoPeríodo (My)Fonte
Idades dos Gelos~250
~200
Holmes (1927)
Steiner & Grillmair (1973)
Grandes Eventos Tectónicos~200Holmes (1927)
Ciclos Climáticos~300Fisher & Arthur (1977)
Intervalos Magnéticos Mistos 285Negi & Tiwari (1983)
My -milhões de anos



Correlação entre as idades dos grandes “traps” e as principais extinções em massa das espécies nos últimos 250 milhões de anos. Simultaneamente à erupção dos “traps” dão-se mega-impactos: provados no caso de Chicxulub há 65 milhões de anos, Manicouagan e Rochechouart há 210 milhões de anos, Popigai e Chesapeake Bay há 35 milhões de anos; e prováveis no caso de Tore, 300 km a Oeste de Peniche, uma estrutura com 91 milhões de anos. (Adaptado de Courtillot, 1995, Ribeiro, 1998 e Monteiro, 2004)


Curiosamente, o nosso sistema solar possui dois movimentos na galáxia – a Via Láctea – respectivamente: gasta 250 milhões de anos a dar uma volta em torno do eixo galáctico e um movimento oscilatório de saltitação acima e abaixo do plano de simetria imaginário que passa pelo centro da galáxia. Este autêntico movimento pendular do Sol, faz com que o sistema solar passe de 30 em 30 milhões de anos pelo plano médio da galáxia. É possível que ao passar pelo plano médio da galáxia o efeito gravítico da massa aí existente faça com que os cometas da Nuvem de Oort sofram um empurrão e muitos migrem para o sistema solar interior ocorrendo um período de maior número de impactos sobre as superfícies planetárias e consequentemente na Terra. Para alguns estudiosos a periodicidade das extinções maciças é coincidente com o período de 30 milhões de anos de passagem do sistema solar pelo plano médio da galáxia, facto que poderia explicar ainda muitas das periodicidades observadas em diferentes fenómenos terrestres.



Movimento do Sol dentro da Galáxia. O Sol descreve uma órbita completa em torno do núcleo maciço da Via Láctea em 250 milhões de anos. Nessa circum-navegação, o Sol sobe e desce lentamente em relação ao plano galáctico, que atravessa de 30 em 30 milhões de anos. Terá esse período algo que ver com as extinções maciças na Terra e outros eventos geológicos ?


Na verdade, para oito casos conhecidos, as extinções em massa são periódicas e coincidentes com a actividade de superplumas que produziriam volumes gigantescos de basalto (“traps”) em períodos extremamente curtos da história da Terra (menos de um milhão de anos), levando a uma sugestão – especulativa e fascinante – de que os mega-impactos favoreciam o magmatismo e seriam responsáveis por vários aspectos da evolução da Terra. É até possível, como sugerem outros cientistas, que estas interacções resultem de fenómenos com base numa dinâmica não-linear e caos determinista, nos quais diferentes osciladores acabam por produzir períodos semelhantes (o registo dos impactos terrestres, a dinâmica do próprio manto, as perturbações no dínamo e campo magnético terrestre e as pulsações vulcânicas).

Numa forma extrema – mais especulativa e por isso mais fascinante – tem sido sugerido que a própria Tectónica de Placas e as formas superiores de vida que ela permite (como a nossa espécie) seriam mesmo um efeito secundário de mega-impactos à escala do globo. Uma das revoluções das Geociências das últimas décadas e da exploração espacial foi a de nos mostrar que a Terra é com efeito um sistema aberto, em que todas geosferas estão em interacção com o Sistema Solar e a Galáxia. Os efeitos de mega-impactos sobre a superfície do nosso planeta ainda estão longe de uma compreensão satisfatória. A ligação do impactismo, do vulcanismo, da tectónica de placas e da origem e evolução da vida são certamente um desafio para o futuro da Geologia que cada vez estará mais próxima da Astronomia.

Bibliografia:

  • Gehrels, T (1994) Hazards Due to Comets & Asteroids. The University of Arizona Press, Tucson.

  • Koeberl, C. & MacLeod, K. (2002) Catastrophic Events and Mass Extinctions: Impacts and Beyond. Geological Society of America Special Paper 356, 746 pp. Boulder, Colorado.

  • Monteiro, J.F. (2003) Alfred Wegener, a Origem das Crateras da Lua e o Impactismo nas Ciências da Terra. CD das Comunicações Apresentadas ao VI Congresso Nacional de Geologia, Universidade Nova de Lisboa.

  • Pizzarello, S. (2004) Chemical Evolution and Meteorites: an Update. Origins of Life and Evolution of the Biosphere 34: 25-34.

  • Ribeiro, A. (1998) Uma Breve História Tectónica da Terra. Expo 98, Lisboa.

  • Smoluchowski, R., Bahcall, J. & Matthews, M. (1986) The Galaxy and the Solar System. The University of Arizona Press, Tucson.

    Na Net:

  • Near Earth Objects

  • A missão Rosetta e os pequenos corpos do Sistema Solar

  • Astrobiologia: um olhar sobre o Universo, a Terra e a Vida

  •