O nascimento do Islão


Entre o século VI a.C. e o século II da nossa era, isto é, desde Tales até Ptolomeu, a civilização grega, e em particular a sua intelectualidade, iluminou a humanidade. Após este período brilhante, a “inspiração” e a civilização grega começaram a desvanecer-se.

Apesar do declínio, o sistema geocêntrico de Ptolomeu, inspirado no universo aristotélico, e em todo o conhecimento que ele encerra, pode ser considerado como uma das maiores obras astronómicas produzidas por aquela civilização, mesmo tendo em conta que não incluía muitos dos desenvolvimentos criados pela cultura grega. Podemos referir, por exemplo, que a ideia de Platão de um universo infinito, não estava contemplada, o mesmo acontecendo em relação à sugestão de Demócrito segundo a qual a Via Láctea seria um enorme aglomerado de estrelas. Contudo, em termos de evolução da astronomia, talvez mais grave, terá sido o facto de Ptolomeu ter completamente ignorado a proposta de Heraclides, segundo a qual a Terra deveria rodar sobre si própria, e a de Aristarco, que propunha que a Terra orbitaria em torno do Sol.


Tratado astronómico persa do séc. X. Crédito: NLM, EUA.
Depois do declínio grego, a civilização romana ainda conseguiu produzir algum conhecimento, se bem que na maior parte das áreas, a um nível incomparavelmente inferior ao dos gregos. A partir do século V, com o início da decadência irreversível do Império Romano após a invasão do sul da Europa por povos mais ou menos bárbaros vindos do Norte, o poder ficou nas mãos de quem não possuía uma evolução cultural e intelectual, suficiente para assimilar os conceitos associados ao saber criado pelo mundo greco-romano. A partir daí, o processo de criação de saber mergulha no vazio, e na Europa assiste-se ao início de uma crise civilizacional profunda.

É um pouco mais a oriente, na Síria, na Pérsia, e sobretudo em Constantinopla, que se tenta preservar o saber criado pelas civilizações da Antiguidade. O Islão tem então um papel histórico que se revelará de extrema importância. Na verdade, a civilização muçulmana chamou a si a responsabilidade de recolher, preservar, e transmitir o conhecimento produzido pelas civilizações anteriores, mas sobretudo o que havia sido criado pela civilização grega.

Tendo como mola impulsionadora a religião, e como força motriz a mensagem cosmológica de uma irmandade eterna e universal entre os crentes muçulmanos, a cultura árabe espalha-se rapidamente, e estende-se do Atlântico até à Índia. Contudo, é nos territórios situados nas margens do Mediterrâneo que a expansão do Império Árabe assume maior relevância, sendo que o interesse do povo árabe por esta região é perfeitamente justificado, pois tinha sido o berço de poderosas civilizações da Antiguidade.

Passam então a ser frequentes os contactos entre intelectuais europeus e centros culturais da civilização islâmica, como Córdoba, Toledo, e outros espalhados um pouco por todo o império. Estes contactos permitiram a alguns intelectuais mais atentos, entre os quais devemos destacar os monges dos mosteiros dos Pirenéus, um primeiro conhecimento das obras dos pensadores gregos que entretanto haviam sido traduzidas para árabe. Quase de imediato, começa a sentir-se a necessidade de traduzir também para latim essas obras até então desconhecidas ou, nalguns casos, simplesmente ignoradas. Essas traduções para latim tiveram o efeito esperado, ou seja, um número muito maior de estudiosos passou a ter acesso à cultura grega.


Manuscrito muçulmano medieval sobre as órbitas planetárias. Crédito: Harun Yahya.
Apesar dos muçulmanos não terem contribuído de forma significativa para o progresso de muitas das áreas do saber, não deve ser esquecido o enorme trabalho desenvolvido por este povo na preservação e transmissão do conhecimento herdado da Antiguidade. Sem esse trabalho talvez não tivesse sido possível a evolução a que a Europa assistiu nos séculos que se seguiram à decadência do Império Islâmico. Foram os muçulmanos os principais responsáveis pelo despertar e sacudir das consciências na Europa. Por todo esse trabalho, pode dizer-se que o mundo ocidental está em dívida para com a civilização islâmica.

O despertar de consciências, e o consequente acordar da Europa, começa a verificar-se por volta dos séculos XI-XII, mas não tem implicações imediatas ao nível da astronomia, muito embora as questões cosmológicas tivessem passado a estar no centro das atenções dos intelectuais europeus. De facto, entre os séculos X e XV, não há qualquer desenvolvimento significativo na astronomia europeia. Foi necessário um trabalho prévio de assimilação das obras gregas, para depois se passar à fase seguinte: questionar esses trabalhos. Foi assim que as questões cosmológicas foram repensadas, e as consequências dessa reflexão foram importantes na evolução da astronomia que se verificou posteriormente.


O universo medieval de Dante em “A Divina Comedia”.
Desde que as traduções dos primeiros trabalhos são conhecidas e estudadas, por volta do século XI, assistiu-se desde logo ao nascimento de uma torrente de novas ideias. As nuvens negras que pairavam sobre o conhecimento começam a dissipar-se. Começam a surgir jovens interessados em debater questões fundamentais nas diversas áreas do conhecimento. É o abanão necessário ao nascimento de novos centros de criação de saber. Surgem as universidades.

Do ponto de vista puramente astronómico, não pode ser ignorada a influência que teve a obra de Ptolomeu, o Almageste, no seio das universidades europeias da época. Na verdade, a “Biblia da Astronomia” possuía virtuosidades técnicas tais, que não era comparável a nenhum outro trabalho astronómico conhecido na Europa, e o debate surge com naturalidade. Entre os problemas mais discutidos desde o início, estavam naturalmente questões filosóficas, religiosas, e cosmológicas. A discussão rapidamente transpôs as portas das universidades, “atingindo” fortemente tudo e todos, mas principalmente outros intelectuais, e não apenas os académicos, que entretanto se tinham dado conta da necessidade de repensar os modelos teológicos. Um bom exemplo é o de S. Tomás de Aquino, quando no século XIII, e em consequência de toda a agitação intelectual que já se verificava, sentiu a necessidade de mostrar que a teologia cristã se poderia perfeitamente acomodar num universo aristotélico, desde que fossem efectuadas algumas (poucas) transformações; o modelo de universo adoptado, por exemplo, teria que perder o seu carácter eterno, uma vez que havia sido criado por Deus. Um outro exemplo pode encontrar-se em A Divina Comédia, de Dante, onde o autor faz uma clara adaptação do modelo cosmológico aristotélico, para o compatibilizar com a teologia cristã.

Nos finais do século XIV, ainda sem uma evolução na astronomia que fornecesse dados de observação que permitissem sustentar alguma da insatisfação que se ia notando relativamente ao modelo de Ptolomeu, o universo medieval atinge o auge: era completamente antropocêntrico, santificado pela religião, sancionado pela filosofia, e racionalizado pela ciência geocêntrica aristotélica.