A Grécia: berço da civilização ocidental



Tales de Mileto.
Independentemente das fontes onde beberam os pensadores gregos da Antiguidade Clássica, podemos dizer que a civilização ocidental tem as suas raízes mais profundas mergulhadas na civilização grega daquela época. Na verdade, a civilização grega da Antiguidade operou uma transformação cultural e civilizacional de tal envergadura que afectou todas as áreas do conhecimento, e marcou a primeira grande ruptura verificada na história do pensamento humano. Foi esta ruptura que alterou em definitivo, e radicalmente, o percurso evolutivo da civilização ocidental. De tal forma que, passados cerca de 2500 anos, podemos dizer que a Grécia da Antiguidade continua presente. O Homem grego foi sempre testemunha de uma humanidade que quase não mudou ao longo dos tempos. A cultura grega chega aos nossos dias atingindo-nos fortemente, e se assim não fosse, o mundo ocidental não seria certamente como hoje o conhecemos. O pensamento grego esteve presente em Mileto, com Tales, mas também em Atenas, com Sócrates, e ainda em Alexandria, com Aristarco, antes de brilhar em Siracusa, com Arquimedes. Mais tarde estará em Roma e em Florença, com os de Medicis, sem nunca deixar de influenciar a cultura ocidental até aos dias de hoje. Apesar das primeiras reflexões filosóficas sistemáticas e sustentadas terem tido a sua origem na Grécia Antiga, é muitas vezes admitido que os problemas essenciais não mudaram significativamente desde então... podendo considerar-se que os filósofos gregos “apenas” indicaram o caminho, que depois, e até à época actual, a ciência mais não fez que percorrer.

O início da revolução efectuada pelos gregos pode situar-se por volta do início do século VI a.C.,. É também a partir dessa época que é possível reconhecer uma utilização sistemática da geometria, nos métodos adoptados pelos astrónomos gregos, métodos esses que teriam uma importância fundamental na evolução da ciência, nos séculos que se seguiriam. Convém dizer que o que hoje sabemos sobre o conhecimento astronómico grego no início desta nova época, se deve às obras de Aristóteles que chegaram até nós, as quais foram escritas cerca de dois séculos mais tarde, isto é, no século IV a.C., e onde Aristóteles nos oferece uma compilação do conhecimento produzido pelos pensadores gregos dos séculos anteriores. Aristóteles refere muitas reflexões e propostas de filósofos e pensadores em geral, mas no que à astronomia e cosmologia diz respeito, merecem destaque as referências a Tales, Anaximandro, Anaxímenes, e Pitágoras, todos do século VI a.C..


Modelo cosmológico da Escola de Pitágoras: influências mitológicas, mas trajectórias circulares pela primeira vez. Créditos: A. M. Morais, P. Maurício.
Segundo Aristóteles, a grande transformação começa, como dissemos, no início do século VI a.C., sendo os pensadores da Escola de Tales os principais protagonistas. É a partir daí que ciência e religião (mitologia) começam a percorrer caminhos distintos. O sobrenatural é retirado das explicações construídas para os diversos fenómenos da natureza, nas quais os deuses passam a ter um papel absolutamente secundário (com a excepção de alguns casos pontuais). Aristóteles considerava Tales como o pai da filosofia natural, e há histórias/lendas cuja importância será, pelo menos, a de ilustrar o carácter eminentemente pragmático da filosofia desta escola. Conta-se por exemplo, que Tales terá utilizado os seus conhecimentos meteorológicos e astronómicos para prever, quer uma superprodução de azeitona, quer um eclipse do Sol que teria tido lugar durante uma batalha contra os persas, ajudando este fenómeno, inexplicável para os persas, à vitória grega. Mas estes exemplos servem também para evidenciar a importância da astronomia na vida do Homem grego, agricultor ou soldado.


Aristóteles.
Enquanto em Mileto e Samos florescia a Escola de Tales, numa outra região (hoje a Itália meridional) nascia a Escola Pitagórica. Fundada sobre uma concepção matemática do mundo, ela conferia aos números e às figuras geométricas, determinadas propriedades místicas, as quais haveriam de conduzir os pitagóricos a uma concepção religiosa do Universo. Para os pitagóricos o Universo teria sido construído pela Divindade Suprema, ao compor grupos de números... Para eles o número era a razão de toda a existência. Tudo o que existia, e não apenas o mundo físico, mas também os conceitos, as opiniões, as oportunidades ou as injustiças, teriam que poder ser traduzidos por números. Tudo seria regulado pela aritmética, e tudo teria que ter o seu lugar próprio na estrutura global do Universo. Por tudo isto, Pitágoras é muito justamente considerado o pai da numerologia, com inúmeros seguidores, e não só na Antiguidade. Mas Aristóteles conta-nos ainda que a Escola Pitagórica produziu também um modelo geométrico para o Universo. Este modelo tinha, entre outras, a particularidade de pelo menos inicialmente não ser um modelo geocêntrico. O não geocentrismo do modelo ter-se-á ficado a dever a questões de ordem moral e religiosa, uma vez que para os pitagóricos, a Terra e tudo o que nela existia, humanidade incluída, era considerado imperfeito, e portanto a Terra não poderia ocupar o centro, isto é, o local mais importante no Universo finito e esférico dos pitagóricos. Esse lugar especial estava reservado à Fornalha Central, ou “motor” do Universo, e que deverá ser identificado com o local destinado à Divindade Suprema: Zeus. À sua volta orbitariam então todos os corpos celestes ao longo de trajectórias perfeitamente circulares controladas pelo “motor divino”. Estes seriam os primeiros modelos cosmológicos construídos de uma forma geométrica, adoptando o paradigma da simplicidade da trajectória circular, o qual só viria a ser abandonado no século XVII d.C., após o trabalho de Kepler.

Apesar das concepções completamente distintas das duas escolas, a de Tales e a pitagórica, elas revelaram-se fundamentais para que fossem possíveis as primeiras grandes descobertas astronómicas da antiguidade. De entre essas descobertas podemos destacar o reconhecimento da Terra como um corpo celeste isolado no espaço, ou o da harmonia da esfericidade, mas também o da queda dos graves para o centro da Terra, ou ainda o das engenhosas combinações geométricas que permitiam prever as posições planetárias, e que estiveram na origem do complexo sistema geocêntrico ptolemaico.


Modelo cosmológico aristotélico: o geocentrismo. Créditos: A. M. Morais, P. Maurício.
Por esta altura a civilização grega tinha já desenvolvido modelos, que embora possam hoje parecer ingénuos, e até bizarros, ilustravam já, de certa forma, um tipo de abordagem e raciocínio científico que não era de todo trivial, introduzindo argumentos lógicos, sustentados na experiência adquirida na vida quotidiana. Com base na obra de Aristóteles, é possível admitir que os primeiros pensadores gregos são efectivamente os primeiros a tentar substituir as velhas e complexas teias “explicativas” mitológicas, por algo mais natural, algo que de alguma forma pudesse estar relacionado com a própria natureza do Universo observado. São estes pensadores os primeiros a acreditar que a natureza podia ser explicada por leis que não fossem determinadas pelas emoções divinas, e que deveriam ser completamente impessoais, independentes do estado de espírito dos homens. É assim que as explicações para questões fundamentais passam a ser racionalizadas. É toda uma nova forma de abordar, pensar e reflectir os problemas, a qual nunca antes havia sido tentada. Nos séculos seguintes, consequência natural do conhecimento criado, todos estes desenvolvimentos permitiram uma notável evolução cultural, com implicações óbvias em termos civilizacionais.


A complexidade do modelo de Ptolomeu: os epiciclos. Créditos: A. M. Morais, P. Maurício.
Apesar das claras reminiscências mitológicas presentes nos universos pitagóricos, os socráticos, sobretudo Platão e Aristóteles, aproveitaram a concepção geométrica desses sistemas tornando-se adeptos dos modelos esféricos, simples, e harmoniosos da Escola Pitagórica, mas retirando as suas características mitológicas, o que “obrigou” à introdução de uma alteração significativa: a posição central seria a partir daí ocupada pela Terra. Nascia o geocentrismo. O modelo cosmológico geocêntrico sofreu muitos desenvolvimentos desde então, e os filósofos, matemáticos, e pensadores em geral, ajustaram a ideia inicial de acordo com os seus “interesses” particulares. Os filósofos, por exemplo, estavam sobretudo preocupados com o conceito de harmonia, com os ciclos planetários, e com um eventual novo conceito de divindade. Os matemáticos, por seu lado, debruçaram-se principalmente sobre a descrição puramente geométrica do Universo. A astronomia aproveitou todo o conhecimento assim criado para construir modelos cada vez mais sofisticados. O objectivo, tal como hoje, era reproduzir o melhor possível os dados de observação disponíveis. A sofisticação atingiu um nível tal, que foi necessário esperar até finais do século XVI, para ter observações suficientemente precisas que mostrassem a incorrecção do modelo geocêntrico. De facto, os cosmólogos gregos acabaram por desenvolver um notável quadro global do Universo, explicando-o através de modelos assentes em bases filosóficas e matemáticas racionais.


Modelo de Heraclides: uma Terra em rotação. Créditos: A. M. Morais, P. Maurício.
O coroar de todo o trabalho astronómico e cosmológico desenvolvido pela civilização grega acontece no século II d.C. com Ptolomeu, cuja obra, A Grande Síntese Matemática, ou Almageste ("O Maior"), como ficou conhecido depois da tradução Árabe, é uma das estrelas mais brilhantes de todo o empreendimento intelectual levado a cabo pelos gregos. Neste trabalho, Ptolomeu apresenta uma concepção global, harmoniosa, e geométrica do Universo. Mas é também um trabalho que é um tratado completo de astronomia prática, acompanhado das noções de trigonometria necessárias à compreensão da obra, e baseia-se quase totalmente na física de Aristóteles, criada cerca de seis séculos antes. A astronomia de Ptolomeu irá ser sistematicamente utilizada durante cerca de catorze séculos, sem conhecer ataques significativos ou fundamentais, e será necessário esperar até ao período do Renascimento para que a astronomia seja colocada numa via diferente da que até aí tinha percorrido.

A terminar temos que dizer que a qualidade do saber produzido pela civilização grega não pode questionar-se, mas também podemos dizer que os astrónomos herdaram da Antiguidade, uma série de postulados que bloquearam durante séculos, o desenvolvimento da astronomia, a saber:
  • em primeiro lugar o geocentrismo, com a Terra rigorosamente imóvel a ocupar o centro do universo;
  • depois, a divisão do universo em dois mundos; de um lado o cosmos, onde tudo é puro e inalterável, o mundo do éter (a quinta essência) e dos movimentos perfeitos, circulares; do outro, o mundo sublunar da imperfeição e da mudança, o mundo da Terra e dos quatro elementos (terra, água, ar e fogo), o mundo dos movimentos rectilíneos e dos movimentos ascendentes ou descendentes;
  • finalmente, o movimento circular uniforme (ou a combinação de movimentos deste tipo), como o único permitido para os corpos celestes.



Modelo de Aristarco: o primeiro sistema heliocêntrico. Créditos: A. M. Morais, P. Maurício.
Estes postulados aristotélicos, de certa forma princípios cosmológicos, “reinaram” de uma forma quase absoluta durante cerca de vinte séculos. As excepções resumem-se às propostas de Heraclides e Aristarco. Enquanto Heraclides propunha um movimento de rotação para a Terra com o objectivo de explicar de forma simples a sucessão dos dias e das noites, Aristarco, era o primeiro astrónomo heliocentrista da Antiguidade (mas também o último), o único verdadeiro percursor das ideias de Copérnico, não tendo contudo conseguido impor-se aos geocentristas aristotélicos.

Bibliografia:
  • A. Berry, A short history of astronomy
  • W. S. Anglin and J. Lambek, The heritage of Thales
  • W. K. C. Guthrie, The Greek Philosophers: From Thales to Aristotle
  • C. H. Kahn, Anaximander and the origins of Greek cosmology
  • F Ueberweg, A History of Philosophy, from Thales to the Present Time