Quem conta um conto...


Toda a gente sabe, ou calcula, que a estrela de Belém tem uma origem bíblica.

O que talvez pouca gente saiba é que a sua origem bíblica se resume apenas a uma pequena referência, de 12 versículos e que se pode encontrar no Evangelho segundo Mateus, capítulo 2. Assim relata o autor:

1 E, tendo nascido Jesus em Belém de Judeia, no tempo do rei Herodes, eis que uns magos vieram do oriente a Jerusalém,
2 Dizendo: Onde está aquele que é nascido rei dos judeus? Porque vimos a sua estrela no oriente, e viemos a adorá-lo.
3 E o rei Herodes, ouvindo isto, perturbou-se, e toda Jerusalém com ele.
4 E, congregados todos os príncipes dos sacerdotes, e os escribas do povo, perguntou-lhes onde havia de nascer o Cristo.
5 E eles lhe disseram: Em Belém de Judeia; porque assim está escrito pelo profeta:
6 E tu, Belém, terra de Judá, De modo nenhum és a menor entre as capitais de Judá; Porque de ti sairá o Guia que há de apascentar o meu povo de Israel.
7 Então Herodes, chamando secretamente os magos, inquiriu exactamente deles acerca do tempo em que a estrela lhes aparecera.
8 E, enviando-os a Belém, disse: Ide, e perguntai diligentemente pelo menino e, quando o achardes, participai-mo, para que também eu vá e o adore.
9 E, tendo eles ouvido o rei, partiram; e eis que a estrela, que tinham visto no oriente, ia adiante deles, até que, chegando, se deteve sobre o lugar onde estava o menino.
10 E, vendo eles a estrela, regozijaram-se muito com grande alegria.
11 E, entrando na casa, acharam o menino com Maria sua mãe e, prostrando-se, o adoraram; e abrindo os seus tesouros, ofertaram-lhe dádivas: ouro, incenso e mirra.
12 E, sendo por divina revelação avisados em sonhos para que não voltassem para junto de Herodes, partiram para a sua terra por outro caminho.



O sonho dos Magos – Gislebertus – (1120-30) – Capitel da Catedral de Autun, Musée Rolin, Autun. Crédito: © Web Gallery of Art
Como se pode comprovar, a referência é breve e nenhum dos outros evangelistas faz qualquer alusão à estrela ou aos Magos do Oriente. Nos anos que se seguiram à morte de Jesus Cristo, a estrela aparece apenas mencionada num escasso número de textos. Um deles é o evangelho apócrifo de Tiago, que faz parte de um grupo de textos não incluídos nas Sagradas Escrituras por não terem sido considerados, pela igreja, como de "inspiração divina". A referência é enfatizada, como podemos ver, em Tiago (21:2):

2 [...] Que sinal vistes indicando o nascimento desse rei?" Responderam os magos: "Um grande astro brilhou entre as demais estrelas de forma a ocultar-lhes [a luz].

No entanto, os textos de Tiago não são tão conhecidos como os de Mateus.

Não deixa, por isso, de ser curioso analisar como uma passagem tão pequena dos evangelhos pode chegar a ter tanta influência e a tornar-se mesmo numa das crenças mais enraizadas da nossa cultura.

Porém, se recuarmos no tempo, já no Antigo Testamento os profetas falavam na vinda do Messias e algumas passagens podem ser interpretadas considerando que esse advento seria indicado por um sinal celeste. No Livro dos Números, por exemplo, o mago Balaão é chamado pelo rei dos Moabitas, Balaque, para amaldiçoar Israel, mas por ordem de Deus acaba por fazer exactamente o contrário. Balaão profetiza:

Vê-lo-ei, mas não agora, contemplá-lo-ei, mas não de perto; uma estrela procederá de Jacó e um ceptro subirá de Israel, que ferirá os termos dos moabitas, e destruirá todos os filhos de Sete.
Números(24:17)


Este texto, que muitos interpretam identificando a estrela com o rei David, foi várias vezes decifrado como um presságio da Estrela de Belém.

Podemos admitir que a crença na estrela tem origem nas antigas profecias e assim talvez faça mais sentido. Mas a única profecia que se encontra referida nestes versículos é a de Miquéias (5:2), que os sacerdotes de Herodes mencionam e que não refere qualquer estrela. Mateus não evoca as escrituras a este respeito em particular e relata apenas o que os Magos teriam visto.

Não me parece nada estranho que se possa sugerir que, numa altura em que o império romano e a sua cultura pagã dominavam e qualquer nascimento ou morte de rei era acompanhado por um "fenómeno" que o pressagiava, Mateus tivesse querido estender o alcance da história de Jesus Cristo, como o enviado de Deus, o mais possível e por isso tivesse referido esta imagem, que pode ser apenas simbólica. A chave da questão pode estar simplesmente relacionada com a beleza de uma apologia, composta no estilo certo, utilizando símbolos que chegaram às culturas romana e judaica, um astro celeste, como Vénus ou Júpiter, ou então uma luz ou um resplendor, que já nas antigas escrituras representavam a glória de Deus. Tudo isto evidenciando a atitude de humildade dos homens, reis ou magos prestando vassalagem, perante o Messias. E depois, tal como diz o velho provérbio: quem conta um conto, acrescenta-lhe um ponto.

Tenha ou não sido simbólica, a imagem funcionou e chegou até nós.


Fresco A Adoração dos Magos – Giotto (1303-1305) – Capela Scrovegni, Pádua. Crédito: © Web Gallery of Art
A Estrela de Belém aparece em muitas das representações da Natividade que foram sendo criadas ao longo dos séculos. As mais antigas mostram uma estrela simples, de seis, sete ou oito pontas, como é o caso de algumas, do séc. IV, encontradas em sarcófagos no Vaticano, ou, do séc. VI, em mosaicos de Ravena. O capitel do séc. XII, de Gislebertus, da catedral de Autun, que se pode ver na primeira imagem, exibe também uma estrela de oito pontas.

Mais tarde, surgem as famosas pinturas de Giotto (1267-1337): o fresco A Adoração dos Magos (1303-05), da Capela Scrovegni, em Pádua, e também A Epifania (1320), um painel pertencente a uma série de sete sobre a vida de Cristo. Nestas duas obras a estrela surge com uma cauda, tal como um cometa, o que não resulta muito estranho se nos lembrarmos de que em 1301 se registou uma passagem do cometa Halley, que Giotto certamente terá observado.

Aliás, esta ideia, de que a estrela poderia ter sido semelhante a um cometa, já vem referida nos escritos de Origen de Alexandria, filósofo e teólogo que viveu entre 185 e 254 D.C. e um dos primeiros a procurar uma interpretação natural para o fenómeno. Origen fala de uma nova estrela diferente das conhecidas no céu e que poderia ter sido um cometa. Os cometas costumavam prever mortes e não nascimentos, mas Origen chega a referir um texto de um filósofo egípcio que dizia exactamente o contrário.


A Epifania (possivelmente de 1320) – Giotto – Fund. John Stewart Kennedy, 1911 (11.126.1) – Museu Metropolitano de Arte de Nova Iorque. Crédito: www.metmuseum.org
Todavia, para a maioria dos teólogos dos primeiros séculos D.C., tal como Santo Agostinho (354-430), a estrela terá sido um milagre, uma força divina que terá tomado a forma de uma estrela. Ainda hoje muita gente acredita nesta justificação.

Mas a partir dos séculos XIV e XV, com o Renascimento e as Descobertas, assistiu-se a um desabrochar do conhecimento, o que viria a trazer à luz alguns paradoxos religiosos. Começou a surgir a necessidade de se encontrar uma explicação mais clara e natural para este género de prodígios, de forma a compatibilizá-los com os dados empíricos.

O contributo mais importante para se começar a pensar na estrela como um fenómeno astronómico real terá sido dado, já no séc. XVII, pelo astrónomo alemão Johannes Kepler.

Antes do Natal de 1603, Kepler observou uma conjunção entre Júpiter e Saturno. Os planetas estavam muito próximos, separados apenas por um arco de grau, na constelação de Peixes. Kepler fez então uma série de cálculos que lhe permitiram concluir que uma conjunção semelhante teria ocorrido no ano 7 A.C.. Mas essa conjunção tivera uma particularidade, fora uma conjunção tripla, ocorrida entre Maio e Dezembro desse ano remoto.

Uma conjunção tripla é um fenómeno raro, que ocorre devido ao movimento retrógrado aparente de um dos dois planetas, que faz com que eles se cruzem no céu três vezes durante um período de poucos meses.


Constelação de Ofiúco com a Nova (N) – Gravura de De Stella nova in pede Serpentarii - Johannes Kepler, Praga, 1606. Cortesia: The Golden Age of the Celestial Atlas, Colecção da Linda Hall Library.
No ano seguinte, Kepler observou um evento ainda mais raro: um agrupamento entre Júpiter, Saturno e Marte. Calculou então a frequência deste fenómeno e aferiu que ela era de 805 anos. Sendo assim, teria acontecido no ano 799 D.C., mas também no ano 6.A.C. (perto da data provável para o nascimento de Cristo). Se continuarmos a contar os anos para trás chegamos a 811 A.C. (presumível tempo do profeta Isaías), depois a 1616 A.C., (período de Moisés)... Demasiada coincidência para Kepler? Talvez, porque parece que se continuarmos a retroceder chegamos a 4031 A.C., altura em que se considerava, imagine-se, que Adão tivesse sido criado!

Kepler achou que a conjunção tripla e o agrupamento poderiam ser indícios de algo, mas não relacionou directamente qualquer um destes fenómenos com a Estrela de Belém. O melhor estava ainda para vir. Em Outubro de 1604, observou uma supernova que se manteve visível no céu durante um ano e cujo aparecimento relatou no volume De Stella nova in pede Serpentarii (Praga, 1606). Teria sido este o sinal.

O que Kepler fez a seguir, erradamente, foi relacionar a conjunção dos três planetas com o aparecimento da nova estrela. Uma coisa teria sido consequência da outra. Depois julgou que no tempo do nascimento de Cristo se teria dado um fenómeno semelhante.

Foi desta forma que, durante muitos anos, se pensou que a estrela de Belém poderia ter sido uma "nova".