A densidade da radiação cósmica de fundo é de mais de 400 fotões por centímetro cúbico. Porém, da mesma forma que os nossos olhos não estão optimizados para ver ondas de rádio ou TV, também não estão optimizados para ver microondas. Por outro lado, as ondas de TV analógica são em geral uma fracção do metro, e portanto não muito distantes das microondas. Por isso, alguns por cento do "ruído" que vemos num televisor entre dois canais é de facto radiação cósmica de fundo! No entanto, os cosmólogos observacionais preferem usar antenas especificamente optimizadas para detectar fotões na zona das microondas, quer seja no solo, através de experiências em balões, ou usando satélites.
Olhando para temperatura da radiação cósmica de fundo em função da direcção na esfera celeste, vemos que ela é notavelmente uniforme. Ao nível de uma parte em 100 000, a temperatura numa dada direcção é igual à de qualquer outra. No entanto, mais em detalhe há pequenas flutuações de temperatura, que correspondem a flutuações de densidade tal como foi explicado anteriormente. Estas flutuações podem pois dar-nos uma espécie de fotografia do Universo quando ele tinha apenas 380 000 anos. Os constantes progressos tecnológicos (em particular na construção de bolómetros) e notáveis avanços nos métodos de análise de dados (que em particular requerem uma grande capacidade de processamento computacional) tem permitido melhorar cada vez mais a resolução desta fotografia. Em duas das figuras acima é possível ver os mapas (processados) obtidos por satélites da NASA, respectivamente COBE-DMR (1992) e WMAP (2003). Mapas ainda melhores serão obtidos pelo Planck Surveyor, um satélite da Agência Espacial Europeia que será lançado em 2007, e no qual alguns (poucos) investigadores portugueses estão envolvidos a título individual. (Devido a uma combinação de inépcia administrativa e falta de visão estratégica, Portugal não tem qualquer participação institucional no Planck, apesar de essa oportunidade nos ter sido oferecida.)
Nos últimos 5 anos o grupo de Cosmologia do Porto tem desenvolvido várias ferramentas que permitem utilizar a radiação cósmica de fundo (para além de outras observáveis) para extrair o valor da constante de estrutura fina. Para além de mim próprio, esta colaboração envolve actualmente Pedro Avelino e Pedro Viana (U. Porto), Alessandro Melchiorri (Oxford e Roma), Graça Rocha (MRAO, Cambridge) e Roberto Trotta (Genebra).
Recentemente analisámos os dados do satélite WMAP, determinando a partir deles o valor da constante de estrutura fina. Como curiosidade refira-se que a análise utilizou cerca de 25 000 horas de CPU no COSMOS, o supercomputador do UK Computational Cosmology Consortium. (Nenhum computador actualmente existente em Portugal é suficientemente potente para efectuar esta tarefa, pelo menos em tempo útil.) Os resultados indicam que os dados são estatisticamente consistentes com uma não variação no valor da constante de estrutura fina, embora haja alguma preferência por valores menores no Universo primitivo. De uma forma mais quantitativa, o resultado encontrado é que o quociente entre o valor da constante de estrutura fina no Universo primitivo (a um redshift de aproximadamente 1100) e o actual está entre 0,94 e 1,01. Novos dados, em particular provenientes do satélite Planck, permitirão nos próximos anos melhorar estes limites em várias ordens de magnitude.
Conclusão
Apesar de ideias sobre dimensões suplementares e variações espaço-temporais das constantes fundamentais da natureza existirem há cerca de um século, só agora elas chegaram à linha da frente da investigação em Cosmologia, em parte porque só agora dispomos da tecnologia necessária para as testar experimental e observacionalmente de forma sistemática, e em parte porque já há alguns indícios preliminares de que elas podem de facto existir.
A Física é uma actividade lógica e portanto (ao contrário de outras diversões intelectuais) tem uma certa resistência a mudanças radicais. É muito mais fácil progredir por reinterpretação, com novas e elegantes ideias trazendo uma base mais sólida para algo já conhecido, e ao mesmo tempo implicando novas consequências que possam eventualmente ser testáveis. No entanto, nem sempre é fácil (ou de todo possível) fazer velhos conceitos encaixar numa nova estrutura, e nesses casos uma mudança radical acaba por ser a solução mais simples.
A variação das constantes (não-gravitacionais) fundamentais da natureza é proibida pela Relatividade Geral e, mais geralmente, por todas as chamadas Teorias Métricas da Gravitação. A confirmação da variação espaço-temporal da constante de estrutura fina implicará a violação do Princípio de Equivalência de Einstein e implicará a destruição da ideia de que a gravitação 4D é um fenómeno puramente geométrico. Por outro lado, revelará também a existência de campos gravitacionais adicionais (por enquanto desconhecidos) no Universo, possivelmente na forma de um dilatão previsto pelas teorias com dimensões suplementares. Como tal, será uma revolução mais dramática do que aquela que levou a substituição da gravitação Newtoniana pela de Einstein.
A maioria das pessoa, cientistas ou não, estabelece uma distinção entre a Física (que de alguma forma estuda os processos a que estamos habituados no nosso dia a dia na superfície da Terra) e a Astronomia (que estuda os céus). Esta distinção tem obviamente raízes históricas profundas, e é aliás extremamente interessante, para quem se interessa pela História da Ciência, discutir como surgiu e foi evoluindo através dos tempos e nas várias civilizações e culturas. Por outro lado, esta distinção existe ainda hoje, e é visível numa grande variedade de situações, desde a forma como as duas são ensinadas nos liceus, até à forma como estão estruturados cursos universitários, departamentos e agências nacionais ou internacionais de investigação científica. (É no entanto curioso que a separação varia de país para país: a França e o Reino Unido são dois casos que proporcionam uma comparação interessante com a situação portuguesa.)
Na minha área de investigação, esta distinção só começou a desaparecer há cerca de 30 anos, quando alguns cosmólogos notaram que o Universo primitivo passou por uma série de transições de fase, sobre as quais a Física de Partículas pode dizer bastante, e portanto é aconselhável que os cosmólogos aprendam Física de Partículas. Hoje em dia o círculo está a fechar-se, com os físicos de partículas finalmente a compreenderem que, à medida que tentam explorar condições cada vez mais extremas, não há qualquer laboratório terrestre que seja capaz de as produzir. De facto, o único laboratório capaz de o fazer é o próprio Universo primitivo, e portanto é também aconselhável que os físicos de partículas aprendam Cosmologia.
O tema aqui discutido é o melhor exemplo de um problema que está a ser atacado pela comunidade cientifica na fronteira entre as duas áreas. Isto torna-o obviamente um tema difícil, pois só é possível contribuir tendo um bom conhecimento da linguagem, formalismo e métodos das duas áreas, mas torna-o também um tema extremamente interessante.
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