Pedro Nunes com a sua poma (esfera) e um compasso, tal como aparece representado no Padrão dos Descobrimentos, em Lisboa
Abraão Zacuto (fl. 1500) era astrólogo, tal como os outros matemáticos e cosmógrafos que auxiliaram os pilotos dos Descobrimentos. Igualmente astrólogos eram Tycho Brahe (1546-1601), Johannes Kepler (1571-1630) e outros astrónomos respeitadíssimos pela comunidade científica moderna. O próprio Galileu (1564-1642) fez horóscopos, hoje recolhidos no volume 81 dos seus manuscritos. Não é pois de espantar que Pedro Nunes se possa ter dedicado à prática da Astrologia, embora seja perfeitamente evidente pelos seus escritos que as suas preocupações maiores eram de ordem matemática e astronómica.

No século de Pedro Nunes (1502-1578), a astrologia era aceita entre os homens cultos com perfeita naturalidade. Já tinham surgido alguns autores a criticá-la frontalmente, nomeadamente Giovanni Pico della Mirandola (1464-1494), mas esses críticos eram marginais ao espírito da época.

A astronomia e a astrologia eram estudadas em conjunto. Os homens que sabiam registar e prever o movimento dos astros eram os mesmos que sabiam estabelecer horóscopos. A astrologia era estudada aprofundadamente nos cursos de medicina, pois aceitava-se, de acordo com o que Cláudio Ptolomeu de Alexandria (séc. II d.C.) tinha escrito e sistematizado no seu Tetrabiblos, que os astros tinham uma influência determinante sobre as doenças. Para se ser médico era pois necessário ser-se astrólogo. Pedro Nunes, que se tornou Doutor em Medicina, a única área científica que na época fornecia o grau académico máximo, fez certamente horóscopos para reis e príncipes e foi naturalmente consultado sobre temas astrológicos. O mais provável é que, mesmo que se tivesse interessado pouco pela astrologia, Pedro Nunes não se questionasse sobre ela. Só muito mais tarde, com a Revolução Científica e a crítica sistemática às crenças antigas e ao misticismo, é que a astrologia e a astronomia se separaram como inimigas. Na época de Pedro Nunes, não se questionavam crenças da mesma forma que mais tarde se passou a fazer.

O que havia desde há séculos era discussões sobre aspectos da astrologia, sendo muito criticada e rejeitada pela Igreja Católica a chamada astrologia judiciária, isto é, a prática de aceitar que os astros determinassem ou influenciassem decisivamente a vida e o futuro dos homens. A Igreja criticava essa versão da astrologia por esta se opor ao livre arbítrio, princípio fundamental da doutrina católica. Se o homem tinha a capacidade de escolher entre o Bem e o Mal, então o seu futuro não podia estar escrito nos astros.

Na mesma obra em que se refere de passagem à astrologia, Pedro Nunes propõe um processo de subdivisão de escalas que viria a ser conhecido como nónio e que seria uma das criações do matemático que lhe dariam maior projecção internacional. Na gravura vê-se réplica do único instrumento da época que sobrevive e que está dotado de nónio. Trata-se do Quadrante de Kynuyn, fabricado em 1595 em Londres e descoberto há poucos anos em Florença pelo comandante Estácio dos Reis
Ainda por outro motivo via a Igreja com suspeita certas práticas astrológicas: a crença na influência determinante dos corpos celestes poderia desembocar na idolatria dos astros. Por essa razão, o mundo católico aceitava a prática astrológica enquanto esta discutisse influências sobre o mundo material, nomeadamente o tempo, as secas, as colheitas e, naturalmente, a saúde dos homens. Mas não podia aceitar o poder dos astros sobre a alma nem que estes determinassem o futuro, como o defendia a astrologia judiciária.

Pedro Nunes refere-se à astrologia apenas uma vez, na introdução ao seu livro De crepusculis (1542). O que diz, contudo, é muito breve. Dirigindo-se ao rei D. João III, refere-se ao príncipe D. Henrique, futuro Cardeal Rei, de quem era tutor. Diz que o seu discípulo "compraz-se de modo admirável com a teórica da Astronomia, isto é, da ciência que se ocupa do curso dos astros e da universal composição do céu, que não da crendice vã e já quase rejeitada que emite juízos sobre a vida e a fortuna."

É difícil retirar deste extracto algo mais do que a condenação da astrologia judiciária, que emitia "juízos sobre a vida e a fortuna", isto é, sobre o destino dos homens. Houve, no entanto, quem aí visse uma condenação da astrologia. É o caso de Gomes Teixeira (1851-1933), um dos maiores matemáticos portugueses e, simultaneamente, uma dos nossos maiores historiadores de ciência. Escrevendo no princípio do século XX, numa altura em que ainda predominava uma visão positivista da história da ciência, Gomes Teixeira interpreta de maneira talvez um pouco forçada esta passagem de Pedro Nunes. Vale no entanto a pena ler o texto que escreveu sobre o assunto e que abaixo se reproduz. Nesse texto, Gomes Teixeira não só discute a astrologia como fala de recomendações astrológicas referentes à coroação de D. Sebastião. Infelizmente, ainda hoje nada se sabe ao certo sobre o episódio aqui discutido. Talvez a historiografia nos venha a esclarecer sobre o que de facto se passou e assim lançar luz sobre o que pode ter sido um episódio marcante da astrologia em Portugal.


Pedro Nunes e a Astrologia1, por Gomes Teixeira

Gomes Teixeira (1851-1933) foi um dos maiores matemáticos portugueses de sempre e, no fim da vida, um notável historiador das matemáticas em Portugal
Percorrendo os belos livros do ilustre Conde de Sabugosa, reconhece-se claramente, pela forma e pelos assumptos, que foram escritos por pena de fidalgo português que ama a sua Pátria. Com efeito, o estilo é simples e nobre, a linguagem é elegante e vernácula e os assumptos são tirados da História de Portugal, fonte abundante de Lendas encantadoras, de Narrativas interessantes, de Tragédias que emocionam e de Epopeias que assombram. Nas suas Neves de Antanho encontra-se um artigo consagrado a Pedro Nunes e a sua filha Guiomar, ao qual vou ajuntar aqui uma Nota singela, fragmento de um livro inédito2.


A Astrologia foi introduzida na Europa, juntamente com a Astronomia, pelos Árabes e Judeus, e o numero de crentes nos seus prognósticos era tão grande e a fé neles tão intensa que os médicos eram obrigados a conhecê-la, ainda que não acreditassem nos seus vaticínios, a fim de poder tirar todo o proveito material da sua profissão.
No mesmo caso estavam os astrónomos. Regiomontano e Kepler, por exemplo, tiveram de escrever obras sobre praticas astrológicas a fim de obter recursos para poderem entregar-se aos cálculos e observações que lhes imortalizam os nomes. Isto mesmo afirmou o próprio Kepler, dizendo que a Astronomia tem uma filha muito doida, chamada Astrologia, mas que a mãe não despreza a filha, porque esta é rica e sustenta a mãe, que é pobre.
No século XVI, em que viveu Pedro Nunes, ainda a Astrologia era forte e respeitada, mas começava a decair, combatida pela Igreja católica e por muitos homens cultos; mas o golpe mortal só lhe foi dado mais tarde pelos trabalhos dos filósofos e sábios dos séculos seguintes.
Em Portugal, no referido século XVI, misturaram ainda André do Avelar, no seu Repertório dos tempos, e Manoel de Figueiredo, na sua Hydrogaphia, sérios assuntos astronómicos com variadas fantasias astrológicas; e, no mesmo século, o judeu português. Francisco Faleiro, residente em Sevilha, publicou na sua Arte de marear, ao lado de sã doutrina sobre Astronomia aplicada á Náutica, duas páginas onde se fala da influência de Saturno sobre os melancólicos, de Vénus sobre os fleumáticos, etc.
Nas Obras de Pedro Nunes só se fala da Astrologia na Introdução ao livro De Crepusculis, mas é para qualificar a aplicação da Astronomia às predições sobre a vida e sorte dos homens e das nações como quimeras e como superstições felizmente quase extintas. Por isso soubemos com surpresa, pelas Neves de Antanho, de um acto de pratica astrológica atribuído ao grande matemático pelo Padre José Pereira Bayão, que escreveu no século XVIII.
Este acto passou-se em 1568 quando, ao atingir D. Sebastião a idade de catorze anos, a Rainha Regente D. Catarina d'Áustria resolveu entregar-lhe o governo de Portugal.
Dias antes de se realizar a cerimonia da posse do novo Rei, dirigiu-se Pedro Nunes à Regente para a avisar de que convinha retardar a entrega do governo ao neto, porque no dia que se escolhera estavam os astros em posição de mau agouro, e que por isso, se EI-Rei começasse a governar nesse dia, seria o seu reinado instável, cheio de inquietações e de curta duração.
D. Catarina observou que já não era possível fazer-se a transferência da cerimonia para outra ocasião, por estarem feitos os preparativos, e, diz o cronista, Pedro Nunes terminou, exclamando: vejo que são inevitáveis os trabalhos deste reino da parte dos quais Vossa Alteza será testemunha ainda que não dou remate deles!
Como explicar esta contradição entre as opiniões de Pedro Nunes na força da vida e na sua velhice?
De certo naquele momento solene, o afecto á criança de 14 anos, que acabava de ser seu discípulo e que ia tomar nas suas mãos o peso de um ceptro, lhe despertou na alma alguns restos de superstição inconsciente que lá tivessem deixado as quimeras da educação filosófica que recebera na sua juventude.
Mas talvez a narrativa de Bayão seja mais uma lenda (deturpação de um facto sucedido quando D. Duarte subiu ao trono, também contado pelo Conde de Sabugosa), a ajuntar a muitas outras, sobre o visionário e simpático monarca, mistura de louco, de herói e de santo, que, julgando-se destinado por Deus a dilatar pela Mauritânia o domínio de Portugal e a fé de Cristo, ficou a dormir lá eternamente em campa rasa e em lugar desconhecido, sem uma cruz a indicar que jaz ali um Cristão, sem uma coroa a indicar que jaz ali um Rei.
Pedro Nunes morreu poucos dias antes da tragédia de Alcácer Quibir3, quando Portugal moribundo já não precisava dos cálculos do seu cosmógrafo.

F. Gomes Teixeira.
REITOR HONORARIO DA UNIVERSIDADE DO PORTO

1In Conde de Sabugosa: In Memoriam, Portugália Editora, 1924
2Refere-se Gomes Teixeira ao texto "Elogio histórico de Pedro Nunes", incluído no seu livro Panegíricos e Conferências, Imprensa da Universidade, Coimbra, 1925.
3Trata-se de deslize de Gomes Teixeira, sempre muito cuidadoso nas suas referências. Segundo mostrou documentalmente António Baião, Pedro Nunes faleceu em 11 de Agosto de 1578, enquanto a batalha de Alcácer Quibir ocorreu a 4 do mesmo mês. No livro em que veio a incluir este extracto, G. T. corrigiu o erro de datas.