Confirmado o primeiro sistema binário de auto-lente

2014-04-22

Imagem do Sol usada para simular o efeito de lente gravitacional de uma anã branca sobre uma estrela do tipo da nossa. Crédito: NASA.
À primeira vista, parecia uma espécie de planeta
planeta
Um planeta é um objecto que se forma no disco que circunda uma estrela em formação e cuja massa é superior à de Plutão (1/500 da massa da Terra) e inferior a 10 vezes a massa de Júpiter. Ao contrário das estrelas, os planetas não produzem luz, apenas reflectem a luz da estrela que orbitam.
virado de cabeça para baixo mas acabou por revelar um novo método para o estudo de sistemas estelares binários.

O doutorando Ethan Kruse, da Universidade de Washington (UW), trabalhou com Eric Agol, astrónomo da UW, para confirmar o primeiro sistema binário de auto-lente – um sistema em que a massa
massa
A massa é uma medida da quantidade de matéria de um dado corpo.
da estrela
estrela
Uma estrela é um objecto celeste gasoso que gera energia no seu núcleo através de reacções de fusão nuclear. Para que tal possa suceder, é necessário que o objecto possua uma massa superior a 8% da massa do Sol. Existem vários tipos de estrelas, de acordo com as suas temperaturas efectivas, cores, idades e composição química.
mais próxima pode ser medida pela forma poderosa como amplia a luz da estrela companheira mais distante. Embora o nosso Sol
Sol
O Sol é a estrela nossa vizinha, que se encontra no centro do Sistema Solar. Trata-se de uma estrela anã adulta (dita da sequência principal) de classe espectral G. A temperatura na sua superfície é aproximadamente 5800 graus centígrados e o seu raio atinge os 700 mil quilómetros.
esteja sozinho, cerca de 40% das estrelas do mesmo tipo encontram-se em sistemas binários, ou em sistemas múltiplos, orbitando as suas companheiras numa dança gravitacional.

A descoberta de Kruse confirma a previsão feita por um astrónomo, em 1973, com base em modelos de evolução estelar da época, que dizia que um tal sistema deveria ser possível. O artigo da autoria de Kruse e Agol foi publicado na edição de 18 de Abril da revista Science.

Tal como acontece com tantas descobertas interessantes, esta deu-se, em grande, parte por acidente.

Os astrónomos detectam planetas demasiado distantes para poderem ser observados directamente pela diminuição da luz que ocorre quando um desses mundos transita (passa em frente) a sua estrela-mãe. Kruse estava à procura de trânsitos
trânsito
Designa-se por trânsito a passagem de um objecto astronómico à frente do disco de um objecto maior e mais longínquo. Por exemplo, o trânsito de Vénus diante do Sol.
que outros investigadores pudessem ter perdido, em dados do telescópio espacial Kepler, quando viu algo no sistema estelar binário KOI-3278 que não fazia sentido.

"Encontrei o que essencialmente parecia ser um planeta virado de cabeça para baixo", disse Kruse. "O que normalmente esperamos encontrar é uma diminuição no brilho
brilho
O brilho de um astro refere-se à quantidade de luz que dele provém, ou seja, a quantidade de energia por ele emitida por unidade de área por unidade de tempo. Dado que o brilho observado, ou medido, depende da distância ao objecto, distingue-se o brilho aparente (quando medido a uma determinada distância), do brilho intrínseco (conceptualmente medido na supefície do próprio astro).
, mas o que se vê neste sistema é basicamente o oposto - parece um anti-trânsito."

As duas estrelas em KOI-3278, a cerca de 2600 anos-luz
ano-luz (al)
O ano-luz (al) é uma unidade de distância igual a 9,467305 x 1012 km, que corresponde à distância percorrida pela luz, no vácuo, durante um ano.
de distância na constelação
constelação
Designa-se por constelação cada uma das 88 regiões em que se divide a abóbada celeste, por convenção de 1922.
de Lira, alternam na sua proximidade à Terra à medida que se orbitam mutuamente a cada 88,18 dias. Trata-se de uma anã branca
anã branca
Uma anã branca, sendo o núcleo exposto de uma gigante vermelha, é uma estrela degenerada muito densa na qual se encontra esgotada qualquer fonte de energia termonuclear. As anãs brancas, que constituem uma fase final da evolução das estrelas de pequena massa, representam cerca de 10 % das estrelas da nossa galáxia, e são por isso muito comuns. O nosso Sol passará um dia pela fase de anã branca, altura em que terá um diâmetro de apenas 10 000 km.
e de uma estrela do tipo do Sol, e distam uma da outra aproximadamente 69 milhões de quilómetros, mais ou menos a distância a que o planeta Mercúrio
Mercúrio
Mercúrio é o planeta mais próximo do Sol. É o mais pequeno dos planetas rochosos, com um diâmetro cerca de 40% menor do que o da Terra.
está do Sol. A anã branca, uma estrela na fase final da vida, é do tamanho da Terra, mas com 200 mil vezes mais massa.

O aumento do brilho, em vez da diminuição que Kruse esperava ver, era a anã branca em primeiro plano a curvar e ampliar, como uma lupa, a luz da sua vizinha mais distante num fenómeno de lente gravitacional
efeito de lente gravitacional
O efeito de lente gravitacional consiste na deflexão da luz provocada pelo campo gravitacional muito forte de um objecto que se encontra entre o observador e a fonte de luz. Por exemplo, uma galáxia, ou um enxame de galáxias, que se encontre entre nós e um objecto astronómico muito distante, como um quasar, pode actuar como uma lente gravitacional. Tipicamente, o efeito de lente gravitacional faz com que se observe, numa única fotografia, mais do que uma imagem do mesmo objecto.
.

"A ideia base é bastante simples", explicou Agol. "A gravidade deforma o espaço e o tempo e à medida que a luz viaja até nós ela é deflectida, mudando de direcção. Assim, qualquer objecto com massa age como uma lente de aumento", apesar de fraca. "São realmente necessárias grandes distâncias para que o efeito seja eficaz."

"O mais interessante, neste caso, é que o efeito de lente gravitacional é tão forte que somos capazes de o usar para medir a massa da estrela mais próxima, a anã branca. E em vez de uma diminuição no brilho, obtemos um aumento devido à ampliação gravitacional.”

Esta descoberta ultrapassa as pesquisas realizadas em 2013, pelo Instituto de Tecnologia da Califórnia, que detectaram um efeito de auto-lente semelhante, mas sem aumento de brilho, já que as duas estrelas estudadas estavam muito mais próximas.

"O efeito neste sistema é muito mais forte," disse Agol. "Quanto maior for a distância, maior é o efeito."

As lentes gravitacionais são ferramentas comuns em astronomia. Têm sido usadas para detectar planetas em torno de estrelas distantes dentro da Via Láctea
Via Láctea
A Via Láctea é a galáxia de que faz parte o nosso Sistema Solar. Trata-se de uma galáxia espiral gigante, com um diâmetro de cerca de 160 mil anos-luz e uma massa da ordem de 100 mil milhões de vezes a massa do Sol.
e foram um dos primeiros métodos utilizados para confirmar a Teoria da Relatividade Geral
Teoria da Relatividade Geral
A Teoria da Relatividade Geral foi formulada por Albert Einstein em 1916 como expansão da Teoria da Relatividade Restrita (formulada em 1905) de forma a incluir o efeito da gravitação no espaço-tempo. Esta teoria propõe que o espaço-tempo é uma estrutura quadri-dimensional cuja curvatura é determinada pela presença de matéria. Neste sentido, a gravitação manifesta-se como curvatura do espaço-tempo, e não como uma força entre duas massas.
de Albert Einstein
Albert Einstein
(1879-1955). Albert Einstein nasceu em Ulm, na Alemanha. Como físico teórico, revolucionou a nossa compreensão do Universo. A sua contribuição para o avanço da Física Moderna foi única. Doutorou-se em 1905 pela Universidade de Zurique (Suíça), no mesmo ano em que interpretou o efeito fotoeléctrico, o movimento browniano, e lançou a Teoria da Relatividade Restrita. Publicou em 1916 a sua Teoria da Relatividade Geral e foi galardoado com o Prémio Nobel da Física em 1921.
. Quando ocorrem dentro da Via Láctea, têm o nome de microlentes.

Mas, até agora, o processo tinha apenas sido usado nos casos em que, por sorte, uma estrela próxima e uma distante se encontravam transitoriamente alinhadas do ponto de vista da Terra, mas sem estarem associadas de outra forma.

"Casos desse tipo são muito improváveis", disse Agol. "À medida que as duas estrelas vão viajando pela Galáxia, deixam de estar alinhadas e o efeito de microlente observado não volta a repetir-se. Porém, no nosso caso, como as estrelas se orbitam, o efeito repete-se a cada 88 dias."

As anãs brancas são importantes para a astronomia e são usadas como indicadores da idade da Galáxia. São como as brasas que restam de estrelas queimadas e arrefecem ao longo do tempo a um ritmo determinado. Com esta lente, os astrónomos podem saber com uma precisão muito maior qual a massa e a temperatura da anã branca e as observações de acompanhamento podem determinar o seu tamanho.

Sabendo mais sobre as anãs brancas, os astrónomos dão um passo em frente na determinação rigorosa da idade da Via Láctea.

"Esta é uma conquista muito importante para um estudante de pós-graduação", notou Agol.

Os dois investigadores pediram tempo de utilização do Telescópio Espacial Hubble
Hubble Space Telescope (HST)
O Telescópio Espacial Hubble é um telescópio espacial que foi colocado em órbita da Terra em 1990 pela NASA, em colaboração com a ESA. A sua posição acima da atmosfera terrestre permite-lhe observar os objectos astronómicos com uma qualidade ímpar.
para o estudo de KOI-3278 em maior detalhe e para verem se há outros sistemas estelares deste tipo à espera de serem descobertos nos dados do Kepler .

"Se ninguém até agora tinha visto este, então pode haver muitos mais que ninguém viu", concluiu Kruse.

Fonte da notícia: http://www.washington.edu/news/2014/04/21/upside-down-planet-reveals-new-method-for-studying-binary-star-systems/